segunda-feira, janeiro 11, 2010

Perda



 Chega através do dia de névoa alguma coisa do esquecimento,
Vem brandamente com a tarde a oportunidade da perda.

Adormeço sem dormir, ao relento da vida.
É inútil dizer-me que as acções têm consequências.
É inútil eu saber que as acções usam consequências.
É inútil tudo, é inútil tudo, é inútil tudo.

Através do dia de névoa não chega coisa nenhuma.
Tinha agora vontade
De ir esperar ao comboio da Europa o viajante anunciado,
De ir ao cais ver entrar o navio e ter pena de tudo.
Não vem com a tarde oportunidade nenhuma.
Álvaro de Campos





O sol, rodando baixo depois da chuva, traz a luz de que preciso para filtrar as memórias desvanecidas pelos anos, pela lonjura.

Vou então ao encontro da casa lá em baixo, depois de passado o quimbo, o carro já desligado até se deter quieto, depois da vala, defronte da porta com aquela chave enorme – que será feito daquela chave que já nada tem para abrir? 

A casa ruiu, a porta terá sido queimada numa cubata qualquer. Só o espelho do rio transbordando cresce ao fundo, cobrindo a anhara, deve ter saudades de meu pai, vigilante, no seu casaco de couro antigo, com uma pele já coçada, que meu irmão usou depois.

Depois, foi há tanto tempo!

Depois, foi um regresso que nunca deveria ter acontecido, nunca assim, depois foi o abandono que nunca deveria ter tido lugar, nunca assim. Depois, foram outros regressos, outras partidas, a morte traiçoeiramente carregando tão cedo as raízes, os suportes, deixando aquele montão de ruínas, levadas as telhas, as madeiras.

O que sobra está aqui, comigo. Sou eu. Sou eu o adobe que se desfaz, na erosão de cada ciclo de chuvas e cacimbo.


6 comentários:

Rocha de Sousa disse...

A grande e trágica memória de acon-
tecimentos injustos, de perdas sem
nome. Um pouco mordidas de amargu-
ra, as suas palavras continuam be-
las, num arco de círculo que parte
para um real vivido, um sonho des-
vanecendo-se, o último testemunho
perdurável no espaço virtual.
Pergunta a filha de Camus:
est+as triste?
E ele responde apenas:

Manuel Veiga disse...

dorido texto. há memórias que se colam à pele. e de que nunca nos libertamos...

podia ter sido diferente. de facto.

beijo

Manuel de Santiago disse...

Sólo es para decirte que regreso después de meses de ausencia.
He leído, despacio, tu blog. He visto, maravillado, las fotografias.
Te felicito. Me encanta tu modo de escribir, tu modo de decir.
Permíteme un a pequeña sugerencia: cuesta un poco leer el texto entre tantas nubes. Quizá resañlatando más el texto quede mejor. Es una simple sugerecia que no empaña tu buen hacer.
Un saludo.

Justine disse...

Que belo e melancólico texto, amiga. Que lucidez feita poesia, que saudades transformada em força!
Que tristeza construindo beleza...

bettips disse...

E no entanto
pensamos as duas em arcos
arcos de cores que nos ligam
de vidas tão diferentes!

A tua escrita é um som que ouço.
Bjinho I.

M. disse...

Tão magoado e tão belo este texto, Jawaa!