sábado, dezembro 12, 2009

Passado, passados



Eram empresários, ministros, fazendeiros, camanguistas, generais, gente, enfim, com o futuro assegurado. Falta a essas pessoas um bom passado, ancestrais ilustres, pergaminhos. Resumindo: um nome que ressoe a nobreza e a cultura. Ele vende-lhes um passado novo em folha. Traça-lhes a árvore genealógica. Dá-lhes as fotografias dos avôs e bisavôs, cavalheiros de fina estampa, senhoras do tempo antigo. Os empresários, os ministros gostariam de ter como tias aquelas senhoras (...) velhas donas de panos, legítimas bessanganas, gostariam de ter um avô com o porte ilustre de um Machado de Assis, de um Cruz e Sousa, de um Alexandre Dumas, e ele vende-lhes esse sonho singelo.

José Eduardo Agualusa





Um passado passou por mim qual brisa leve, mas forte como uma ventania. Soprou de repente, pintado de cãs, trouxe lágrimas que morreram na voz.

É que eu não tenho passado, tenho passados. Passados como pássaros que povoam o meu espaço, chegam quando menos espero e passam como aves que são, soprando ventos com as asas, alguns voltando em cada estação, outros esquecidos e não os recordo senão em sonhos, os sonhos da noite e os sonhos do dia. 

Não há espaços perfumados sempre. Há a exalação da terra e da chuva, o calor subindo na areia quente, a bosta dos animais, o cheiro nauseabundo do ninho dos répteis na beira do rio. O odor das queimadas, da fogueira grande na rua, aquecendo as noites.

Os pássaros, que a minha memória guarda, são diversos na cor e no porte: imponentes e assustadores, vorazes, esquivos, joviais, prazenteiros. Há os grifos e os corvos e os condores; há as águias e os milhafres e o falcão peregrino, a coruja e o mocho. E a alegria da cor e do grito dos tucanos e das araras, das anduas e das galinhas-do-mato. Depois há os que pontilham o meu espaço mais doce, os mais humildes: os peitos-celeste e os bicos-de-lacre, os catuituis e as viuvinhas-de-rabo-comprido. E os pardais-de-telhado. E o melro e o pisco-de-peito-ruivo.

São estes que eu alimento no meu quintal e exalam o tal perfume que suaviza o meu espaço cá dentro. 


2 comentários:

Manuel Veiga disse...

viuvinhas-de-rabo-comprido e melros cantadores fazem um belo conjunto...

como é que nunca me lembrei?

sagaz o texto. na sua aparente ligeireza...

gostei muito.

beijo

Rocha de Sousa disse...

Memórias, metáforas, metodologias, ou o passado passando ao mudar de
lugar. Das lembranças que ainda fa-
lam de odores suspeitos e bichos da
perturbação, Jawaa passa para outra
dimensão, deixa-se rodear de pássa-
ros que até parece que não existem:
mas quem acalenta esta paz através de certos pássaros, sabe muito bem
do que fala e do que rejeita.
Com sol e frio a alma fica mais la-
vada, isto é, mais defenfida, quer
voar sobre as terras do fim do mun-
do. A propósito, que saudades.
Estive no Bar ontem e só fiz um re-
les abc da mutação das artes.
E mais, morreu o meu pássaro. Como
eles morrem depois da alegria, sem a gente dar por isso.