quinta-feira, dezembro 24, 2009

Há sempre um milagre


– Oh meu filho, como te  posso deixar? Longas são as estradas da Galileia, e curta a piedade dos homens. Tão rota, tão trôpega, tão triste, qté os cães me ladrariam da porta dos casais. Ninguém atenderia o meu recado e me apontaria a morada do doce rabi. Oh filho! talvez Jesus morresse… Nem mesmo os ricos e os fortes o encontram. O Céu o traouxe, o Céu o levou. E com ele para sempre morreu a esperança dos tristes.
De entre os negros trapos, erguendo as suas pobres mãozinhas que tremiam, a criança murmurou:
– Mãe, eu queria ver Jesus…
E logo, abrindo devagar a porta e sorrindo, Jesus disse à criança:
– Aqui estou.
Eça de Queirós






Uma tempestade varreu esta noite o meu tempo actual, no espaço duma aldeia civilizada deste cantinho da Europa.


Para além do vaso de tomilho novo derrubado e alguns utensílios de jardinagem repousando fora do lugar habitual no alpendre, sobra o estrago maior que toca cá dentro quando me vejo submissa, escravizada, por uma senhora todo-poderosa chamada electricidade. O dito inteligente deixou-me sem aquecimento, sem banho; o microondas, o fogão, o forno, sem o mínimo aconchego para o estômago na manhã fria; sem telefone e sem computador que o MEO vai à vida sem luz, o telemóvel a dizer que só aceita chamadas de SOS. Sem máquina de costura, ferro eléctrico, o frigorífico e a arca a descongelarem. Sem carro, porque accionar o portão da cave manualmente exige um certificado dos CNO.


Mas um calor de verdade, aquele calor coberto pela cinza dos anos, que não deixa que as brasas se apaguem, que as fazem brilhar ao mais pequeno sopro, chegou nas palavras de ternura do teu cartão de Natal, minha Amiga. Não viajaram através do computador, foram escritas pela tua mão, naquela caligrafia perfeita, as vogais pequenas e redondas; longas e estreitas as consoantes devidas. Palavras sentidas, trazendo humidade aos olhos pela dor partilhada da ausência, depois pela bondade e força transmitidas.


Então, por sua vez as minhas mãos afagam a cartolina vermelha e fico-me por aquele tempo perdido, na fazenda dos candeeiros a petróleo, de chaminés altas e rendilhadas diariamente lavadas no tanque de água corrente, lembras-te? O fogão a lenha, aceso pela manhã para ferver o leite, a cozinha-velha ao lado da vala, a garagem não mais que um telheiro sem porta. E a imagem da figura esguia de teu pai. O Senhor Sá.


Numa noite de Consoada, teu pai apareceu sozinho, inopinadamente, a passar o Natal connosco. Já a mesa estava posta, ainda os sonhos a fritar na cozinha, já aquele cheiro de canela e açúcar nas rabanadas sobre a toalha branca bordada com velas e azevinho e sinos e laços. Vinha do Lobito, acompanhado de umas garrafas de vinho, frutos secos e a sua alegria. Foi uma festa para nós, e ele veio encontrar a família que lhe faltava (deve ter sido quando tu vieste estudar e estavam por cá os três – hás-de perguntar-lhe se ainda se lembra!).


Não foi preciso haver electricidade. O carro parou à porta, apagaram-se os faróis e o meu pai disse: «Olha, é o Joaquim!»

3 comentários:

Manuel Veiga disse...

Boas Festas~

beijo

Rocha de Sousa disse...

Ia escrever Boas Festas, mas creio que já o fiz. Não sei cumprir bem esse «dever». Lembrei-me agora de um ponto que julgo de interesse: as
citações que faz em cada post deve-
riam ser acompanhadas do título da
obra a que recorreu. O actual,creio
ser um dos contos do Eça -«O Suave Milagre».
Como sempre, este seu texto é mais uma obra exemplar: porque de um fa-
cto «a leste do paraíso» chega ao
Paraíso do testemunho e da afirma-
ção.
Há a tempestade e os estragos, ca-
tastróficos.Há a perda transitória
dos suportes estruturais da vida urbana, à luz desta imsensata civi-
lização, aviso para a mudança das
escolhas, a necessidade de uma res-
posta alternativa.
A bela lembrança do cartão de boas
Festas escrito à mão, calor da ver-
dade.E a dor da partilhada como os
frutos de uma verdade inteira - e aqui, de súbito, a memória de um tempo mais real, feito das certezas
básicas que não tinham o tom redu-
tor das nossas tecnologias, ou do uso que fazemos dela.
O pai chega (estou a lembrar-me do meu próprio texto)e é o símbolo da união dos laços, o nexo, reconhecer
Joaquim aquém das luzes e a verda- de que nos alumia, a consciência.
Boa triangulação.

M. disse...

Que bonita a ligação que fazes entre as palavras de Eça e as tuas! Gostei muito.