sexta-feira, dezembro 04, 2009

Amigo


... Simples questão de tempo és e a certas circunstâncias de lugar
circunscreves o corpo. Sentas-te, levantas-te
e o sol bate por vezes nessa fronte aonde o pensamento
– que ao dominar-te deixa que domines – mora
Estás e nunca estás e o vento vem e vergas
e há também a chuva e por vezes molhas-te,
aceitas servidões quotidianas, vais de aqui para ali,
animas-te, esmoreces, há os outros, morres
Mas quando foi? Aonde te doía? Dividias-te
entre o fim do verão e a renda da casa
Que fica dos teus passos dados e perdidos?
Horário de trabalho, uma família, o telefone, a carta,
o riso que resulta de seres vítima de olhares
Que resto dás? Ou porventura deixas algum rasto?
E assim e assado sofro tanto tempo gasto

Ruy Belo 



Abre-se a manhã e há menos um amigo no passadio da vida.

Quando esta se arrasta sem justificação plausível, as motivações perdidas, os laços afectivos que restam fragilizados pelas tempestades da vida, por incompreensões, egoísmos, desafabilidades, feridos de há muito pela injustiça dos homens, impera o acumular dos anos gerando sensações díspares que convergem numa ânsia infinita de querer passar além do que a vida não pode já dispensar aos espíritos lúcidos. Assim, o sono eterno não é mais do que uma libertação.

Então há que chorar os vivos que o perderam, manter viva a sua memória e seguir o risco traçado das estrelas que continuam a brilhar no fundo do peito, guardando a sabedoria dos Mais Velhos. E agora a nós, que os substituímos na roda da vida, a nós que nascemos de África, resta continuar a cumprir o credo dos lobos, nossos irmãos da selva: Respeitar os mais velhos, ensinar os mais novos, cooperar com o grupo, brincar quando for possível, caçar quando for preciso. E também partilhar os afectos, expressar os sentimentos. Deixar, enfim, as suas pegadas na senda partilhada.

Assim fizeram os nossos maiores.




4 comentários:

Justine disse...

Belíssima e exemplar filosofia de vida!Os mortos serão honrados, se os vivos praticarem esses princípios...
Comovente, o teu post.

Paula Raposo disse...

Maravilhoso post, com um poema do Ruy Belo (de quem tanto gosto) e as tuas palavras (tão certas).
Adorei.
Muitos beijos.

Manuel Veiga disse...

excelente a tua escrita. formalmente muito bela. de "filosofia" de vida simples. eprofunda...

beijo

Rocha de Sousa disse...

Quando se vem da memória de um céu de chuva, voamos de súbito sobre uma luz branca de salvação. O poe-
ma faz uma bela passagem para um belo texto sobre a amizade, a lin-
guagem poética, a vida e a morte.
A voz de uma escritora eue acredita
na plenitude do ser, diz-nos avisa-damente que nos alegremos pelos que partem e nos condoamos pelos que ficam. Uma filosofia capaaz de
desafiar os temores e as convenções
com que combatemos o desaparecimen-
to da consciência do concreto.