segunda-feira, novembro 09, 2009

Muros


        – Diga lá!
       Manuel da Bouça aproximou-se mais da mesa, pousou os olhos sobre o papel em branco e murmurou, com a voz a chorar na garganta:
             
        Minha querida Amélia:

       Em primeiro lugar desejo que esta carta te vá encontrar perfeitamente de saúde, mai-la nossa Deolinda. Eu estou muito contente. Isto aqui são outras terras. Já tenho trabalho e se Deus quiser…

 

       Deteve-se a repetir:
       – Se Deus quiser… Se Deus quiser…
       A voz saía-lhe tão sumida, tão vaga e trémula que Rufino ergueu a vista. Manuel da Bouça estava lívido e com os olhos cheios de lágrimas.
       – Que tem, patrício? Está doente?
       – Nada, não é nada. Isto passa. Faça favor de escrever…
       E, procurando dominar-se, balbuciou:

       -Se Deus quiser, Amélia, hei-de ser muito feliz.

Ferreira de Castro




Em cada vida há sempre um muro derrubado e em cada queda uma libertação.

O tempo nos concede o poder de olhar para o que ficou para trás, para o que resultou em generosidade e em dor, para o que acrescentou ao nosso peso anterior – e interior. Não há arrependimento.

Só pedaços de vida que se enrolam como folhas de tabaco verde, depois dobradas, coladas em espirais que escurecem com o tempo, tomam o tom bonito das castanhas e repousam em meadas, guardando os segredos da sua construção. Exalam um odor que inebria.

Como os molhos de cartas antigas, laçadas com uma fita desbotada, dentro de sobrescritos amarelecidos, em papel grosso de correio terrestre ou finíssimo de transporte aéreo, em azul pálido, debruados a cores; têm os selos carimbados ou apenas um nome, uma morada, numa letra cursiva dardejando símbolos, a tinta azul Pelikan. E o tinteiro aberto na memória tem um cheiro doce.

Como as flores lácteas que vestem os cafezais guardam o olhar perdido logo a seguir em frutos vermelhos, depois secos, torrados, moídos, torturados, para se desfazerem em pó aromático. O prazer só acontece quando da terra emerge a água fervente, mesclando de odor e sabor o rio que bordeja os lugares perdidos.

Caem os muros do nosso descontentamento, enfeitam-se as ruínas de beleza, mas o rio continua a correr devagar.


3 comentários:

Paula Raposo disse...

É um verdadeiro deleite para os sentidos poder ler-te!!
Beijos.

bettips disse...

As folhas que desenrolas
no encanto da memória
apaziguada!
E digo que sim, algo das rosas, algo dos bichos, algo das pedras, algo de África que não conheço (li com 8 ou 10 anos "de Angola à Contra-Costa", vê lá!)
algo de verde
algo de aceno.
Vivemos algures, num tempo que é de bom romantismo, de bom carácter.
Bjinho I.

Rocha de Sousa disse...

bemEsta espécie de pranto cantado de mistura com os muros a liberta-
ção depois deles;ou este rio de tempo que nos garante a corrente da memória; ou ainda as cartase os selos de todas as recordações perto do tinteiro -- tudo isso, enfim, diz bem, muito bem, permite-nos vestir o nosso descontentamen- to com o espectáculo das ruinas patrimoniais dentro da nossa alma.