quinta-feira, outubro 08, 2009

Noite molhada




«Il me faut retrouver le seul territoire salutaire, mon seul refuge, l’écriture. Il me faut le transporter, hors d’atteinte du hasard, hors des avatars de ses rencontres. Il me faut lentement y égrener mes pensées, pour leur éviter de tomber dans l’à-pic vertigineux de l’angoisse. Alors seulement, mes rêves pourront être sereins.»
Malika Mokeddem



A chuva caindo devagar, os beirais soando na noite, trazem até mim os rostos que me adoçaram a infância. A face escura do meu Velhote, enrugado pelo sorriso permanente, os olhos perdidos nas pregas fundas, os dedos tamborilando a tigela de esmalte azul debruada a um tom mais escuro, branca por dentro. «Ca senhora catito» (minha senhora pequenina) era o seu bom dia para mim em cada manhã na fazenda.

E eu aprendi a sorrir com ele.

A tigela era o convite para irmos buscar juntos ao armazém as batatas para o almoço, à horta as cenouras e os nabos, a hortaliça para a sopa. Colher os morangos, depois. Vejo ainda nas suas mãos um rolo de folhas de couve muito apertadas e, com uma faca longa e fina, afiadíssima na pedra ao lado da vala, cortá-las para o caldo verde, a minha única sopa desejada, servida fumegante e regada – já no prato – com azeite.

Olho o céu pesado que me afaga e parece que a noite nasce da escuridão daquele rosto sempre doce, como um manancial de quietude e generosidade. Tantos anos volvidos depois que o perdi, tantas vezes recordado pelo carinho de nós, pela dedicação a minha mãe, pelo mimo de ensinar-me a comer por sua mão, no seu braço, entre as laranjeiras do quintal.

Choro a dor de não os ter por perto, os tais rostos de quem não recordo mais que ternura e humildade, riso e bonomia. Tenho hoje a certeza que velam por mim onde quer que estejam, são eles a força que me faz sentir única e exalam aquele desejo morno de regressar, em cinzas, um dia.


5 comentários:

Paula Raposo disse...

Maravilhosa a tua memória que me comoveu profundamente. Lindíssimo! Muitos beijos.

Rafael Almeida Teixeira disse...

Bom demais olhar e ver essas lembranças nostálgicas.

Gosto muito de sua literatura.


Abraços afetuosos \o/

Rocha de Sousa disse...

«Il faut retrouver le territoire sa-
lutaire, mon refuge, l'écriture (...)
Alors seulement, mes rêves pourrant être sereins».
É essa a serenidade que procurava e que parece agora reflectir-se no seu belo texto onde abraça belas memórias contra o esquecimento?
A chuva, apesar de triste, tem o mé-
rito, muitas vezes, de nos lavar a
alma.

Justine disse...

Crepitante de nostalgia e ternura, este teu desenrolar de memórias. Como os pingos de chuva que o fez nascer, fresco e cintilante. Belo.

M. disse...

Tão bonito! Tão bonito!