terça-feira, agosto 25, 2009

Desvios


… Mas, noutros momentos, e são esses os verdadeiros, sinto-me feliz que assim seja. Porque todas as paisagens, todas as flores e todos os trabalhos, a mais antiga das terras, vos demonstram, em cada Primavera, que há coisas que não podereis abafar no sangue.

Albert Camus



Passou por mim (não numa rua da baixa) no campo onde me vejo, uma borboleta-monarca. Vi-a de relance, aquelas asas enormes, pintadas de amarelo e negro, voltejando em busca de espaços de agrado que não achou e nem me deu tempo a que a fixasse na minha caixinha mágica. Conforme surgiu, assim se desvaneceu no meu horizonte limitado. Que desvios, que descaminhos a trouxeram até aqui?

Aconteceu como aqueles assomos breves de memória, pródiga de lembranças pungentes que se enrolam em justificações e desculpas que não têm, marcando de tarja o vestido de cor, o amarelo vibrante manchado de negro, perfazendo uma imagem de excelência, caminhando viva e célere.

Nós não somos todos iguais. Há os que caminham percorrendo as estradas já batidas, há os que se desviam por atalhos, há ainda os que ousam abrir caminhos novos por entre o capim rasteiro, caminhos estreitos em curvas suaves apenas contornando os obstáculos, sem ferir as árvores, sem pisar as lavras, caminhando sobre as pedras que assomam de leve da terra escura, saltando valas, atravessando rios sobre troncos roliços, pontes frágeis de madeira. Estes caminham em silêncio para não espantar as aves, as cobras tomando o sol, fazem parte da natureza, tentam passar despercebidos.

São assim as árvores Do húmus que colhem da terra, erguem os troncos bem alto e alargam a copa consoante o espaço de que dispõem, a luz, o calor, alargam as folhas em leques, em palmas a receber o sussurro da brisa. Se a neve os veste, assentam no chão os braços abertos, tornam os corpos esguios e crescem em fuso como afunilam as folhas, guardam no ventre as tocas dos bichos.

Mas há sempre um ganso a perder a rota, uma planta levada pela enchente, uma borboleta perdida, uma criança abandonada às portas do amor.

6 comentários:

Rocha de Sousa disse...

Mais uma vez a sua toada lírica, ligada à terra e aos seus indícios, um olhar que voa sobre a copa das altas árvores, no pressentimento de como
a vida crepita ou de como a harmonia da Natureza comporta belas imagens e incertos caminhos. Nesta convicção afinal límpida e por vezes cheia de quietudes,o olhar não divaga, está atento às pequenas diferenças, a esse drama tantas vezes encoberto do ser:
o ganso que se perde,a planta e a borboleta submersas, uma criança
abandonada às portas do amor. E é neste sangue que não podemos enga-
nar o respeito que nos devemos a
nós próprios, questionando sim mas
sem alienarmos a solidariedade.
Belo passeio, o seu, tutelando-
-se com um poeta da vida.

Manuel Veiga disse...

belo e sensível texto. adoro a tua escrita envolvente.

beijo

pianistaboxeador21 disse...

Na simplicidade das tuas coisas eu vejo um pouco o dedo de Deus e uma sabedoria de quem convive com a Divindade.
E há também aqueles que, enquanto caminham, tropeçam e caem o tempo inteiro e se machucam e machucam os outros, feito loucos pelos caminhos.
Nos teus textos parece tão simples e tão bonito viver. Faz gosto.
Lindo!
Fiquei com vontade de ouvir Maria Bethânia, Lembrou-me uma coisa meio assim: "A arte de sorrir cada vez que o mundo diz não".
Beijo

bettips disse...

...e os nossos olhos que as seguem, as rotas. Tiram desses lugares palavras que encandeiam imagens, borboletas fugindo ao sol. Essa é a tua escrita mais sentida por mim.
Bj

Justine disse...

Uma metáfora empolgante do que afinal é a vida: feita de antíteses e de sínteses, com gente boa e da outra. Muito bem escrito, o teu texto!

Paula Raposo disse...

Excelente o teu texto! Com umas fotos lindas. Tudo belo demais!! Obrigada. Muitos beijos.