domingo, janeiro 25, 2009

Destino

«…O português é que nem essas igrejas barrocas que a mão da gente fez a mandado dele: branco liso por fora e todo emaranhado lá pelos interiores. Em vez de colocar a vaidade no liso, coloca essa barbaridade de ouros, e fica fácil de pegar por espírito ruim. No frio dessas igrejas não tem Deus nosso senhor nem seus santos nem orixás nem salvação alguma. Só o sofrimento dos negros milhões de vezes pregados na cruz onde Cristo branco sofreu uma vez. Não precisa procurar mais, não. Seu destino era a Bahia, dona e no seu destino a dona já está.»

Inês Pedrosa





Quantas vezes vi rodar um lenço grande em viés entre os dedos, enrolar uma e outra vez na mão e tecer uma rodilha, redonda e grossa. E colocar no alto da cabeça e por cima a quinda cheia de milho ou o tabuleiro da venda de hortaliça, o moringue, o garrafão de água acabada de tirar da fonte ou um pano atado com roupa. Assim também, todo um mundo de «bicuatas», a casa inteira à cabeça de um corpo esguio, nas costas um filho e um riso na boca.

Foi ontem, o ontem espreguiçado na memória, chegado com as chuvas alongadas nestes invernos diferentes que se misturam na mente povoada de histórias. Não é à toa que a água se fez símbolo da eternidade, a água diamante precioso sem ser pedra, a pedra de que se faz o mundo: pó, areia, terra, rochas, montanhas, todas as construções erguidas pelos humanos.

A água é alimento. Dá à terra poder, o poder de criar, de se transformar em mater, de se cobrir de verde, de se enfeitar policroma. Pinta-a de azul, a esfera azul que roda e rodopia belíssima no espaço sem cor. Para além da sensualidade com que se insinua por todas as rugas do solo, com que percorre o leito dos rios, para além da humildade com que desce das montanhas nevadas e corre e se despenha para se afundar na entrega ao mar, a água é arrasadora e poderosa.

Ninguém a pode impedir de correr lesta e leda, pairar em nuvens serenas ou despenhar-se em chuva, em neve ou granizo. Parar quieta, iluminar-se e iluminar, depois do vento, sobre a relva e o trevo.

Tem de ser livre.

Como nós.


11 comentários:

Rocha de Sousa disse...

Lesta e leda, a água que murmura nas fontes naturais, formando um cantar pequeno, notas repetidas en-
tre socalcos, é a água que corre para o mar, cumprindo o ciclo da evaporação, concentração, arrefecimento em chuva, muita mas equilibrada. Esse ciclo tem de nos parecer eterno de facto, porque to-
da a vida passa pela água. Hoje já
sabemos da finitude de todas estas maravilhas que antecedem a vida:um
dia a Terra será tão árida como Marte, ou terá deixado de existir
com a explosão final do Sol. Por
isso fazemos poesia, invenção li-
berta, uma fala belíssima para en-
cobrir ou disfarçar o embuste que nos rodeia, finito.
Rocha de Sousa

pianistaboxeador21 disse...

Li e gostei.

abraço,

Daniel

Manuel Veiga disse...

(pre)sente-se o odor da terra molhada. ubérrima...

beijos

Paula Raposo disse...

Claro que tem se ser livre...beijos.

Licínia Quitério disse...

Dos dois textos, sem desprimor para a Inês, prefiro, de longe, o teu. É uma escrita excelente.
Um abraço.

dona tela disse...

Já aprendi aqui, pelo menos, duas palavras: lesta e leda.

Muito obrigada, Dona Jawaa.

vida de vidro disse...

O teu texto tem cor e cheiro. E a liberdade das palavras. Muito belo. **

Rafael Almeida Teixeira disse...

O teu texto tem cor e cheiro.²
Vejo sinestesia, também, nas tuas imagens.

Um abraço com afeto.

mena maya disse...

Bendita a fonte de onde correm tão belas palavras!

Concordo em pleno com a Licínia!

Um abraço.

Justine disse...

A água é toda essa vida em potência que o teu belíssimo texto nos conta. Mas, como tudo na vida, é preciso também o outro lado: o sol revitalizador. Com os dois, a terra é mater, é útero, é vida!

Justine disse...

Gostei da tua história do 10º jogo, e do modo como enquadraste as palavras "difíceis":))