quarta-feira, agosto 20, 2008

Convicção

 

Na ardência da palavra
A pele gretada, o sulco sobre a terra.
Mater no húmus da espera
O som da semente. O odor lento.
O caminho. Esta fraga de dor
Despenhada sobre o tempo...

Apenas a águia (ou o corvo branco)
Se atrevem na voragem
Deste horizonte....

Quem colhe a manhã que teima
Na brisa dos dedos?

Quem de tão néscio se obriga
A caminhar ignorante da água
E do lume no interior da pedra?
Quem nesta brida se atreve além
Do curto olhar do dia?

Como se chama fosse o voo da ave
Saturnina...

Herético



Há momentos em que a percepção do mundo nos chega com uma clareza inusitada.

Na vastidão da praia mansa e viva, os corpos bronzeados despidos na orla da praia, esguios circulando de sorriso fácil, o pontão além, aquela sucessão de tábuas entrando pelo mar, fervilhando de gente logo pela manhã. Crianças subindo aos magotes pela única escada que se ergue das águas transparentes, mergulhando logo em seguida, pujantes de vida, risos misturados ao marulhar das ondas. Os barcos, pequenos batéis que chegam com um atum, depois um peixe-vela, uma dourada, logo amanhados e mãos recolhendo as cabeças enormes, quem sabe a refeição aguardada para uma família. Também os ovos de tartaruga. E as pequenas logrando o oceano, escapando aos predadores do ar, nem sempre aos humanos, mau grado a vigilância dos guardas.

Ouço aquele homem dono do mundo, senhor da ilha, das ilhas – poliglota, parente de todos os políticos, debitando cultura aos turistas, democracia, Mandela, Luther King, ideais do mundo, dos não brancos, recordando uma América onde não teve lugar – sob as tamareiras, palmeiras empurrando-se sobre hibiscos coloridos, cachos de aloendros e alegrias brancas semeadas de lilás. Palmas oferecendo-se ao vento, em leque, em setas ponteagudas, em longas saias balouçando qual havaianas em dança de vénias. Cactos e folhas carnudas de sisal apontando o céu, alguma outra verdura, sensitivas fechando envergonhadas do sol que nos obriga a cerrar os olhos à reverberação que o mar reflecte em ondas puríssimas. Um ou outro veleiro de proa apontada à praia a revelar o descer da maré. Pela noite, Luci cantando a esperança de nos terra num sorriso bonito, timbrado a doce, debaixo das acácias frondosas.

Penso então o meu lugar dentro de mim, as praias bonitas repletas de gente, o clima ameno, os rios de encanto riscando o solo em meneios, as gentes enrugadas nas casas de granito, pedra sobre pedra, esquecidas, perdidas num tempo que já não lhes pertence. Que os novos têm outros prazeres de convívio onde a natureza não tem lugar. Portas adentro, o ruído não é trovoada a anunciar tempestade, o líquido não cai do céu, não molha o corpo, jorra do vidro, do plástico, entra na alma, incendeia e queima. Nem há granizo que se desmanche em água, há saraiva que se faz em pó, a apagar memórias.

Há falta de brio em Portugal, obviamente.

E não só nos atletas.

7 comentários:

vidavivida disse...

Bonita descrição do local, desse paraíso ainda não poluido onde irei qualquer dia passear, contemplar o mar e deliciar-me com a brisa marítima,pôr do sol, a lua, etc.
Alimento para nossas almas e que tanto me faz falta!!!
Continua assim disfrutando da nossa vida terrena que é tão curta e que tão poucos sabem aproveitar.
Beijo

Eremit@ disse...

li o poema - belo e bom texto poético e o de prosa. Bom também e certeiro na forma de dizer e fazer sentir.
Amiga, passaste no Eremitério e as fotos tinham ido...passear, já as apanhei, com uma rede de borboletas e recoloquei.
Estive uns dias - dia e meio, quase 2 - com o Kanguru tão fraquinho, tão anémico, que nem abria a net, apesar de funcionar... mas coitado nem a 1/10 da potência...
Abraço fraterno e cá espero o texto para o nosso 6º Jogo

Manuel Veiga disse...

grato minha amiga.

privilégio meu estar representado neste espaço de inteligência e sensibilidade...

beijo

vida de vidro disse...

Excelente o poema do Herético, bela prosa a tua, a fazer-nos meditar e desejar essas águas.

P.S.: voltei há um tempinho ao Vida de Vidro e tenho andado a tentar reencontrar os contactos dos amigos. Bom voltar aqui. **

M. disse...

Belas as palavras do Herético e as tuas. Ambas a fazer-nos reflectir.

dona tela disse...

Xaaaauuu!!!!

Justine disse...

Magnífica a tua descrição. Sôdade!

E a conclusão final, também concordo, infelizmente...