sábado, novembro 10, 2007

Desencanto


«Ogivas para o sol – vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto

Das coisas que beijei mas não vivi...
Um pouco mais de sol – e fora brasa,
Um pouco mais de azul – e fora além.

Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...»

Mário de Sá Carneiro



O ar que corre manso na beira-Tejo não é o mesmo que ajuda a levantar voo a viuvinha-de-rabo-comprido nos capinzais do Queve, o meu rio. Aí, a quietude é mais perigosa porque há sempre dois olhos à espreita nas águas barrentas da lagoa, há por ali um sáurio quieto a colher o sol, escondido na cama fofa, ao lado do areal onde os ovos chocam no calor dos trópicos. Só o odor pestilento nos alerta para a iminência de um golpe de cauda repentino, que deita ao chão a presa, logo abocanhada em pressa a afogar no pantanal.

Como trocar esta segurança pelo mistério apelativo de uma recordação bem funda no tempo? Só o papel aceita tudo: o vagar no longe do horizonte imenso, numa solidão que não é, numa angústia que é prazer, o mergulho do corpo inteiro na água tépida, o cabelo sem cãs colado ao rosto, a alegria insana da inocência.

Apagar na tecla os dias sem retorno, nunca saciados, viver saltando a corda, afoita, contando as voltas, uma, duas, três, apanhar-lhe o ritmo e entrar nos saltos, depois jogar ao ringue, correr nas escondidas e bater no coito. Como tudo se alterou no fluir do tempo, dos anos, da comunicação, dos contextos, da semântica das palavras!

Eu quero nascer outra vez. Quero sonhar em navio escondida, levantar manhã cedo e correr à proa, ver abrir as ondas, sentir o infinito do mundo, encher o peito de maresia. Quero olhar os golfinhos e seguir com eles nas ondas, afuselada na esperança dos dias que não chegaram, na fé da força que me legaram, na firmeza do rumo que tenho dentro.

Quero voltar a ser criança e não ter medo.




5 comentários:

APC disse...

Nem sabes como esse poema me diz tanto! Tanto, que guardo a sua última estrofe num post-it da alma!

Gostei muito do teu texto, nas núvens da memória sobre uma saudade azul-criança.

A tua primeira frase - a primeiríssima de todas - daria um belíssimo início de um livro teu! Reparo muito na forma como os livros começam, sabes? A primeira frase quase sempre me toma.

"O meu pai nunca me deixou estar aqui." - Assim começa um dos que tenho agora em mãos (eheheh, tou a ser mazinha, eu sei)... E como gostei da forma como começaste! E como continuaste. Gostei de te ler!

Deixo um abraço. Pedindo desculpas por poder vir tão pouco; mas é verdade que levo tanto! :-)

rui disse...

Olá Jawaa

O desencanto…, quando ele nos invade, fica a dor.

“Momentos d’alma que desbaratei…
Templos aonde nunca pus um altar…
Rios que os perdi sem os levar ao mar…
Ânsias que foram mas que não fixei…”
(Mário de Sá-Carneiro)

O ar que soprou no rosto das Tágides, não é com certeza aquele ar que respirei em Huambo, em Kuito ou Luena, não…, não é!
Este ar que sopra por entre as colinas de Lisboa, não tem a magia nem contém o mistério da aventura que é viver em África.

Serás sempre criança todas as vezes que recordares a tua infância.

Fiquei encantado com este post.
Mergulhei nas minhas recordações.

Abraço Jawaa

Rui Caetano disse...

Não desistir é o lema, o desencanto surge, de vez em quando, nas nossa vidas, mas é contra essas imposições da vida que devemos lutar e vencer com a nossa vontade. Lindo poema.

Buda Verde disse...

desencanto, essa é a palavra para esses dias. ser criança novamente e esquecer de tudo talvez ajude...

ótimas palavras, faz pesnar.

beijo

M. disse...

Ah também eu gostava de voltar a ser criança, mas de outro modo que não fui!
Sempre tão bonito o teu modo de sentir o mundo.