domingo, agosto 12, 2007

Riqueza

Amanhã chegam as águas.

– Ti Chico, mas isso foi noutro século!

– Pois foi! Que idade julgam voceses que teria o pai de meu pai se fosse vivo? Que idade julgam voceses que eu tenho?

É verdade. O Ti Chico é mais velho do que podemos supor assim à primeira vista, a olhar para o seu corpo ainda rijo e… enxuto.

Talvez por isso não tenha querido as guelras. Prefere a injecção e escreveu isso – com um X – no quadradinho respectivo. Que está demasiado velho para se reciclar em peixe.

Muitos velhos preferem a injecção. Pode parecer macabro, mas a Comunidade viu-se obrigada, por razões de pragmatismo e também de respeito pela escolha individual, a implementar esta forma, o mais indolor possível, de as pessoas dos povoados a submergir perderem a condição de vivos, em absoluto, e não apenas a condição humana, ainda que apenas num plano parcial. Que posso eu dizer? São escolhas. Apesar de tudo, a alternativa entre a operação e a injecção ainda é uma das provas de que a Comunidade é uma sociedade livre.

– E o que eu ia fazer para debaixo d’auga? – resmunga o Ti Chico – só ia empatar – acrescentando: – Ao menos assim sei o que me acontece.

Rui Zink


Uma semana longe da casa lusitana, bem aqui ao lado, pelas calles da capital, chegou para ouvir com mais realismo o fado português.

Parece que a música e o folclore revelam bem o espírito de um povo: desde o samba no Brasil, onde o fado nem sempre foi (nem é para a maioria) auspicioso, ao bailado flamengo que passa a quem assiste – mesmo perante a intensidade dum dedilhar de guitarra e uma voz dorida clamando a dor – uma entrega ao movimento, ao silêncio que se mantém até o apelo para as palmas e o incentivo que surge da plateia a louvar a garra do sapateado.

É verdade que ali se abre o telejornal com a notícia de que a Espanha está em alta na economia – como todos sabem, diz a locutora com um sorriso – e em Portugal uma notícia de melhores perspectivas se anuncia logo com dúvidas implícitas, de cara fechada – parece-me que isso faz a diferença. Em Portugal vive-se mal, todos sabemos, cada vez pior (alguns cada vez melhor, assim acontece também nas guerras) mas não me recordo de ver mais alegria nos rostos quando houve o bodo aos pobres nas últimas décadas do século passado.

Voltando à música, felizmente o fado tem seguido em frente com outros contornos de que podemos orgulhar-nos, mas o folclore português é pobre de movimentos, austero, monocórdico, fechado, do vira nortenho ao corridinho algarvio fica-se pela beleza dos trajes, quando existe. Parece que lhes falta a alma.

Diz António Barreto, com propriedade, que a riqueza em Portugal é escondida, as pessoas querem ser moderadas no gesto, manter uma aparência humilde, cultivar a modéstia à boa maneira de outros tempos.

Não ostentar, sequer o riso.

Pois eu gosto de sair e olhar a diferença, reconhecendo a minha ânsia de espaço, não só de quintal mas de bosque, floresta, rio, mar. Gosto do meu canto, da minha sala, da minha casa, do meu país. Acho-o lindo. Mas precisa de mais alma. Terão sido os anos da ditadura que nos marcaram e a marca de água permanece para além da imigração que aceitamos por vezes à boa maneira colonialista, da emigração que continua a verter o sangue arterial deixando o venoso circular nas veias esclerosadas.

Pelas calles (de las Huertas), pisam-se pomares de Calderón, de Vega e Cervantes, em letras de ouro; mantém-se a traça dos edifícios e mora gente na cidade antiga; o Prado aparece nos varandins do Paseo, que não se fez avenida. A água e o frescor das árvores cortam o excesso de calor no Verão e os teatros enchem-se à hora certa. Em época baixa, os Espanhóis acorrem a Madrid com as crianças pela mão, para que conheçam o seu país e a sua História.

Em Portugal, a escassos 100 km da capital, os alunos das escolas esperam que os professores os levem aos Jerónimos, à Torre de Belém, ao Panteão, quando semanalmente acompanham os pais à «catedral» da Luz, onde passam o dia no «mosteiro» de Colombo.

Nós temos tudo o que eles têm. Mais ainda, desculpem a imodéstia.

Falta-nos saber clamar a nossa riqueza!

6 comentários:

vida de vidro disse...

O texto de Rui Zink : aquela delícia de amarga ironia!
O teu texto: não sei se nos falta alma. Fico sempre com a sensação de que mataram qualquer coisa em nós, como povo. E não sei se será possível recuperar esse "qualquer coisa..." **

Lord of Erewhon disse...

O Fado... já era. Como muitas outras coisas... pastéis de bacalhau ainda vai havendo... :)

Dark kiss.

vida de vidro disse...

Um bom resto de semana. Beijo.

bettips disse...

Tens a razão toda. Ainda há alguns meses, numa pequena cidade da fronteira, via toda a gente a sair à tarde, imensas crianças, tudo a conversar nas esplanadas!! Aqui só se olha, invejazinha... Há falta de amor próprio. E também tenho a sensação da Vida de Vidro, uma falta qualquer... E estavam as árvores todas no Passeio do Prado? Abraços

Luisa disse...

Em comparação com os espanhois, falta-nos realmente, alma, entusiasmo, risos. Em Espanha vemos todas a sair do trabalho com cara aberta, a correr para o passeio ou para o bar mais próximo. Aqui, vêem-se rostos fechados, a enfiarem-se nas camionetes que os levarão para casa, para os subúrbios onde outras tarefas os esperam, sem espaço para um intervalo feliz.

M. disse...

De volta ao prazer de te ler.
Um beijo.