segunda-feira, julho 09, 2007

Modernidade

«Às vezes tem saudades, Augusta – não
dos filhos nem dos netos, sequer do tempo em que matava gatinhos no quintal das traseiras ou do marido que bebia demais. Não queria ser mais nova do que é, moça bonita outra vez, nem tem vontade de saber nenhuma das coisas que ignora. Quando se senta para descansar as artroses e parece olhar os automóveis que vão e vêm pela marginal, não é o trânsito que vê com os seus olhos de velha. Por detrás dos óculos, os olhos dela sonham regressar a uma terra com um prado verde, semeado de castanheiros e árvores de fruto, videiras e milho. Mas essa terra talvez já nem sequer exista.»

Manuel Jorge Marmelo


Queria tanto saber desenhar…!

Desenhar com mão firme, não como desenho de letras que escrevo e que saem sem que tenha tempo de pensar o que elas representam porque são a continuação do meu pensamento. Registar aqui a rugosidade dos caules, as manchas, ligar-lhes os ramos, as ramadas, contornar-lhes o arredondado das folhas, matizar os verdes, captar-lhes a luz, as sombras, o movimento, o ondear do vento…

Ainda assim encanto-me com a minha eficácia: olho para o papel, olho para estes gatafunhos que escrevo no jardim público, deserto a esta hora de meu horário pessoal. Estranho, mas meu, que me possibilita isto agora.

Quieta, pensar como é maravilhoso o acto de escrever. E constatar que se caminha para uma outra eficácia, em que não será preciso ensinar às crianças a desenhar letras porque elas vão aprender directamente do computador pessoal; mais um tresmalho humano, como a concentração no sentido da visão consumiu a percepção do mundo através do ouvido, do olfacto, do tacto. Que pena! É uma maravilha humana como a história contada nos tapetes antigos dos Andes, algo que ficará na História enquanto houver quem saiba, quem queira, quem possa, quem sobreviva.

Mas dizia eu que gostaria de saber desenhar.

Tive nos primeiros anos de escola uma colega, Marília de sua graça, Marília Rodrigues de Oliveira, que nunca mais vi, mas de quem nunca esqueci as rosas, os botões de rosas, os ramos de rosas, perfeitos, reais, as três folhas nervuradas, tudo a lápis de cor. Ninguém nunca soube desenhar como ela. Ela via as coisas como eu não reparava nelas; naquela altura nós teríamos sete, oito anos no máximo.

Hoje sei que poderia ter aprendido a desenhar. Sei também que teria sido capaz, mas o leito do meu rio desviou-se daquele pequeníssimo obstáculo, o dom da Marília, e outras areias me seduziram, em cascatas me despenhei, em lagoas aquietei minhas águas.

Além disso, cheguei tarde. A tradução da realidade em pintura já não tem lugar, a fotografia chegou superando tudo, a tecnologia actual faz maravilhas – a mim inventa-me irreal, tira-me as cãs, as rugas, os anos, transforma-me em modelo de Modigliani, Mucha, Botticelli – o real, o imaginário, o onírico, em gradações de tons vários, adaptando tudo, convertendo tudo, apagando tudo.

Não é verdade, eu sei.

A mão de quem desenha é a minha mão a riscar um moleskine.



1 comentário:

naturalissima disse...

E que bem desenhas tu as letras... pintas as palavras e frases com sentido e sentimento.
Desenhas ritmos, vibrações que nos tocam.
Os teus "desenhos" têm côr, vida, estórias de encantar, melodias para sonhar, sons de gritos angustiantes, de saudade de ternura e de serenidade.
Gostei do quadro!
Um beijinho