sexta-feira, junho 01, 2007

Eutanásia


Não posso adiar o amor para outro século

não posso

ainda que o grito sufoque na garganta

ainda que o ódio estale e crepite e arda

sob montanhas cinzentas

e montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço

que é uma arma de dois gumes

amor e ódio

Não posso adiar

ainda que a noite pese séculos sobre as costas

e a aurora indecisa demore

não posso adiar para outro século a minha vida

nem o meu amor

nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração

António Ramos Rosa



Pode parecer menos próprio que, em Dia da Criança, eu venha aqui falar de eutanásia, último tabu. Digo último, no sentido de mais recente, porque me recordo de ser adulta, mãe, e comentar, acerca do despudor (o que na altura me parecia) da publicidade passada na televisão: «não tarda, aparecem anúncios sobre preservativos». Eis que a razão forte de Einstein prevalece.

Toco num assunto que cada vez mais me vem sendo presente, sentindo a descida veloz, cada vez mais lesta, para a margem do Hades, onde Caronte me espera na sua barca. Gostaria de embarcar tranquila, serena entregar o óbolo e entrar no nevoeiro eterno, fundir-me nas águas donde provim, deixar a minha força de alma aos que me segurarem a mão na despedida.

Em dia da Criança, é por elas que venho pugnar, quando o país em que vivo me diz todos os dias que há mais pobreza, mais insegurança na velhice, mais necessidade de conforto económico, menos disponibilidade para dedicar a afectos; porém, mais tempo de vida para todos.

E é este espaço de vida que acrescentam a cada um de nós, que me preocupa. Num lugar em que cada vez há mais velhos, mais reformados, mais carenciados, que educação, que medidas estão a ser tomadas para que esse tal espaço seja ainda fecundo, cheio, prazeiroso, doce e reconfortante quando é já cumprido o ciclo da vida?

É preciso a morte para se dar sentido à vida e morrem poucos, poucos nascendo, onde deveriam nascer e morrer muitos. Esta inversão, o desejo atávico do ser humano de encontrar qualquer elixir maravilhoso que o faça viver para sempre, é o cancro do planeta, ele é a célula a abater. Onde é que eu já li, vi, em ficção científica, situações de seres humanos, mareantes eternos do cosmos, aspirando à suprema ventura de deixar de viver?

Não pesam sobre mim preconceitos religiosos, por isso sou a favor da eutanásia, salvaguardados todos, mas todos os requisitos que confirmem a irreversibilidade dum desfecho em sofrimento, da degradação do corpo e da mente, da decadência total e indigna. É um direito que nos assiste, exprimir essa vontade em tempo de lucidez e é ao médico que cabe essa tarefa, só ele tem a percepção correcta do tempo certo, do momento em que já não é mais possível prolongar o que nada é. O Juramento de Hipócrates é uma Bíblia a ser reinterpretada (Einstein outra vez).

Que bom pensar na educação do terceiro milénio com uma amplitude a ultrapassar as questões obsessivas actuais dos jovens e da sexualidade, avançar sem medo nem tabus para a certeza da mortalidade, preparando ao longo da vida essa última fase de vivência em pleno, com respeito, com amor, com liberdade até de decidir consciente e serenamente a sua interrupção, se for esse o caso, conferindo a dignidade devida a todo o ser humano.

11 comentários:

vidavivida disse...

100% DE ACORDO.

Nos tempos em que vivemos em que a esperança de vida se vem prolongando cada vez mais e que os VELHOS se estão tornando um estorvo para a sociedade e para as famílias, estou plenamente de acordo que caiba a cada um decidir quando quer partir.
Tenho pavor de chegar à altura de poder dar trabalho à família e aos outros.
Sou dos que prefiro partir antes de chegado esse tempo, enquanto lúcido.
Tinha muita coisa a explanar mas prefiro ficar por aqui. Que Deus me faça essa vontade!

jawaa disse...

Vidavivida, lê de novo, que não afino pelo mesmo diapasão.
Os velhos não podem ser um estorvo! As crianças é que têm de ser educadas para respeitá-los,preocuparem-se com a qualidade de vida dos idosos, pois elas próprias irão decerto ter mais tempo de vida «velhas» do que «novas»...

Vladimir disse...

quanto mais adiamos pior ficamos, há que traçar o rumo e andar em frente....

vidavivida disse...

Tens toda a razão no que afirmas.

Mas não me referia apenas à família.

Quando temos um governo que nada faz para dignificar a velhice o que podemos esperar?

veritas disse...

Olá jawaa:

Acima de tudo viver com dignidade...com qualidade...

Bjs. Boa semana.

naturalissima disse...

Em Àfrica o respeito pelo mais velho, pelo idoso, faz parte da cultura. Pois são eles os sábios, os que melhor comunicam com as crianças, com a vida, com a natureza e com os espiritos.
Falando assim, de forma muito resumida. E isto ainda se vê e se sente quando se está em terras africanas.

Na Europa, pelo caminho que se toma, pela escolha que se assume, o velho, é considerado um obstáculo, uma coisa que empata a própria familia, a SOCIEDADE!

Triste quando se chega a esta conclusão!
Concordo contigo Jawaa quando dizes: "Os velhos não podem ser um estorvo! As crianças é que têm de ser educadas para respeitá-los,preocuparem-se com a qualidade de vida dos idosos, pois elas próprias irão decerto ter mais tempo de vida «velhas» do que «novas»..."

Parabéns pelo delicado tema.
Sempre vale a pena fazer algo; Fazer despertar em nós sentimentos e sentidos... TEMOS AINDA DE APRENDER A SER HUMANOS.

Um beijinho
Boa semana
Daniela

Rocha de Sousa disse...

Comecemos por Jawaa, o supra nome, e agradeçamos o belo texto que ela dedicou ao fenómeno da velhice e da
eutanásia. Gostei muito da precisão
e síntese do texto, carregado de afecto e humanidade. Mas este tema
é muito complexo e não serve para
ser comparado entre Europa e Áfri-
ca. Tudo isto tem que ver com o lado egoista que a sociedade oci-
dental tem vindo a desemvolver, entre conquistas de direitos, prin-
cípios sociais, saúde, educação, frentes avançadas atrás das quais os preconceitos, a corrupção e o belicismo de controle de meios energéticos e outras alianças, faz
brotar nas pessoas um novo obscurantismo. De restro, a grati-
dão para com os velhos (gosto imenso desta palavra verdadeira)
deriva muito do trabalho selvagem,
dos habitats incomportáveis, de uma
comunidade onde a discoteca substitui alguns breves serões em
família. Tive em minha casa, apenas
de duas assoalhadas, a mãe da minha
mulher e posso testemunhar o horror
dos limites, a impossibilidade de assistência, o peso das solidões durante o trabalho. Tudo isto tem de ser revisto, descomprimido, pa-ra que as nossas sufocações possam
aspirar a uma interacção familiar.
Há mundos e mundos sobre este tema.
*
Quero agradecer-lhe, Jawaa, a bonita abordagem que fez à barcaça do Seixal e dizer-lhe que também estes patrimónios levantam muitas
questões.
Um grande abraço
Rocha de Sousa

Lord of Erewhon disse...

É uma questão complexa... e há muito percebi que a minha posição muda segundo a minha disposição emocional...

paulocosta disse...

Jawaa, agardeço-lhe a encomenda. Um abraço aos seus e a si também.

Paulo Costa

A.S. disse...

Será pedir muito viver com dignidade a afectos até ao fim?
Crianças, jovens e velhos, problemas diferentes, mas sempre, sempre, a mesma dignidade!


Belissimo Post! Um beijo...

vida de vidro disse...

Concordo contigo. Deve ser preservado o direito de viver e morrer com qualidade e dignidade. E sabemos bem como existem casos de extremo sofrimento, no fim da vida. Porque não permitir a hipótese de uma "morte assistida" com afecto, com dignidade? **