sexta-feira, abril 20, 2007

Creio nos afectos



…Creio nos deuses de um astral mais puro

Na flor humilde que se encosta ao muro,

Creio na carne que enfeitiça o além,

Creio no incrível, nas coisas assombrosas,

Na ocupação do mundo pelas rosas,

Creio que o Amor tem asas de ouro. Amen.

Natália Correia




Ouço os pingos que correm dos telhados do alpendre e descem sobre as pedrinhas do jardim e os carros que passam na estrada espargindo água no asfalto lavado.

Através da janela, a chuva mansa e espessa estremece em cortina leve quando olho os choupos felizes ladeando a ribeira. Todos os verdes rebrilham e as rosinhas de toucar, que floriram em Março, espreitam ainda num amarelo doce por entre a folhagem miúda, o chão pejado de pétalas secas que a chuva limpou da roseira-mãe. Engrossam os botões que ainda não abriram, erguem-se rijas as folhas de agapanto.

O jardim surge de repente farto, antes só terra e troncos na relva triste, agora povoado de verdes e as rosas lilás já perfumando o ar.



As outras preparam ainda a explosão da cor. Do jardim agreste de Inverno nasce esta promessa em verde que vai desfazer-se em polícromo. Por breve tempo, que as rosas resplandecem e logo murcham.

Como os afectos cada vez mais precários se consomem num piscar de olhos, numa estação. Não se plantam, não se mondam, não se regam, logo esmorecem.

A era da comunicação faz tudo correr mais célere, em desapego dos lugares que fazem os nossos afectos. Os lugares, as coisas, os cheiros acendem em nós aquele mundo que buscamos nas recordações da infância, da Terra do Nunca de cada um de nós, que mais e mais embelezamos com aqueles que nos marcaram e já partiram.

Esses afectos pertencem-nos: o cheiro a doce de morango que se evola da cozinha-velha, o crepitar do capim na queimada de fim de tarde ao lado da casa, a areia da Samba nos dedos dos pés, o embalar do dongo, o som das ondas nos espigões da Ilha, a água morna a deslizar no corpo.

Os outros chegam com o tempo. Uns passam com ele, outros permanecem. Para sempre.

Nem vale a pena cortar as rosas, que elas só são viçosas no jardim. Não gostam de viver em jarra, logo abrem e desfolham.

Mas há as camélias.

Há as hortenses que envelhecem e ficam.

Há as sempre-vivas.

4 comentários:

bettips disse...

É isso que dizes, sobre o melro e a "velhice". Exactamente e foste a única... a dizê-lo como eu gostaria da resposta! Acreditas? E vim aqui deixar-te um sopro de cor e flor. Lindas as tuas e o teu pensar desfolhado. Obrigada. Bjinho

naturalissima disse...

BELO, BELO, BELO!
Belas as tuas palavras, belas as tuas flores!
Frescura na côr, saborosas na poesia que transmitem, sabedoria nas palvras que escreves.

Desejo-te um excelente fim de semana...
Daniela

veritas disse...

Reconhecem-se os verdadeiros afectos quando eles perduram. Os verdadeiros afectos são os que crescem quotidianamente, não os que explodem, parecem bonitinhos e murcham. Esses são os pseudo afectos, fruto muitas vezes da hipocrisia humana na sua faceta mais grotesca. Os verdadeiros afectos são únicos...Eu sei que tenho poucos, contam-se pelos dedos de uma mão, mas sei que SÃO VERDADEIROS E INCONDICIONAIS!!

Bjs. Bom fim-de-semana.

Ana disse...

Jawaa
E há o cheiro doce do doce de mamão e de manga, e da goiabada fresca, molinha, de barrar o pão...
E as zínias e os gladíolos que enfeitavam os jardins.
E o cheiro da terra, vermelha, de saudade.
E, como as flores, estamos vivos. Ainda...
Beijo com carinho