segunda-feira, março 20, 2006

Escrito ao Novo Mundo



Eu nasci em África, nos Idos quarenta, bem à beirinha dos trinta.

No tempo em que a fazenda de férias da minha infância era um imenso pomar sempre verde de laranjeiras copadas, enormes, altas como as não vejo. Era pequenina eu, parecer-me-iam maiores as árvores… talvez. O certo é que meio século depois, uma viagem tranquila de comboio de Toronto a Niagara Falls me fez sentir outra vez menina, pequena entre as árvores grandes, enormes, donas do céu e da terra quente do Verão de Agosto.

Deve ter sido por pequenos sentires como este que se fixaram no Canadá muitos dos portugueses que demandaram um chão firme, quando a terra prometida lhes faltou, na África que julgaram deles para sempre e onde nasceram os seus filhos. Eu regressei à terra dos meus pais, ambos beirões, mas o pulsar da Europa não passa de uma gaiola dourada para um pássaro da fauna africana.

Numa época em que ainda me sinto com alguma energia, quem dera sentir-me gazela outra vez, voar tranquila por sobre o Atlântico e pousar num velho ninho de cegonha algures por aí. No terceiro milénio tudo é possível em termos de comunicação, até voar uma gazela. E eu queria manter viva a alma da diáspora portuguesa. África e Portugal estão em mim de todas as maneiras; encontrei nessa parte do continente americano uma mistura equilibrada do que me apraz sentir e a ela voltarei sempre que tiver oportunidade.

Porque tenho quase a certeza de que irei chegar a essas terras da neve e ser lida por alguém da comunidade portuguesa que faz parte dos canadianos de hoje, porque nesse espaço reside hoje metade do meu corpo e da minha alma, a eles dedico esta página como a primeira das que se seguirão com sabores daqui e da terra que me viu crescer, páginas doces como o mel de abelha que sorvi do pedaço de favos que me deu ontem o Leonel. O Leonel é um primo de profissão marceneiro, bem a sério como leva a sério tudo na vida. Tem o chão de seus pais que preza acima de tudo, onde refez uma casa de campo, um lugar de churrasco sobre um pátio lindo e largo de calçada à portuguesa, um alpendre de colunas enroladas de glicínias a dar as boas-vindas em todas as primaveras.

Não sei se pela tez curtida do sol, pelas rugas precoces do seu sempre sorriso, pequena estatura ou patilhas de ribatejano, lembra-me o Malhadinhas: «desciam-lhe umas farripas ralas, em guisa de suíças, à borda das orelhas pequeninas e carnudas como cascas de noz; trajava jaleca curta de montanhaque, sapato de tromba erguida, faixa preta de seis voltas a aparar as volutas dobradas da corrente de muita prata e Aveiro vai, Aveiro vem, no ofício de almocreve…»

Homens destes já não há no nosso Portugal europeu, mas o pensamento de Aquilino, pela boca do seu Malhadinhas, ainda vai tendo voz nos períodos difíceis que atravessamos: «Não tenho cataratas nos olhos, ainda que me hajam rodado sobre o cadáver quase dois carros de anos, mas os dias de hoje não os conheço. Ponho-me a cismar e não os conheço. E quanto mais cismo, mais dou razão ao Miguelão da Cabeça da Ponte, que falava como livro aberto, o grande bruxo. Muitas vezes lhe ouvi dizer quando estava de boa lua, o que nem sempre assucedia: “Tempos virão em que governarão as terras vãs e os filhos das barregãs”.»


1 comentário:

Anónimo disse...

"mas o pulsar da Europa não passa de uma gaiola dourada para um pássaro da fauna africana" - tal qual, e muito bem escrito!, um dia, se encontrares o meu "M.&U.", talvez venhamos ainda a entender-nos melhor, espreita aqui:

http://chuinga4.blogs.sapo.pt/18379.html

grande abraço, IO.