segunda-feira, maio 19, 2014

MADRUGADAS




quero falar aqui do meu amor, quero falar
quando o silêncio é de oiro ensimesmado,
o tempo é de ferrugem,
e o espaço é de água na longa solidão
riscada pelas aves.

pobre relento dos sonhos que sonhamos:
passámos por aqui, os olhos rasos de luz
e o coração embalado por um fio de música
a diluir-se no crepúsculo
com as águas morosas, a

sombra a carregar-se ao rés das casas, as
rosas semicerrando-se numa leve respiração.
Vasco Graça Moura



É quase manhã. Quase. O relógio tocou cinco badaladas e o dia ainda não chegou. Não tarda, uma levíssima claridade desperta os pássaros no ninho e eles conversam.

Conversam. Não certamente sobre a organização política da sua espécie, não decerto sobre as próximas eleições que eles sabem estar definidas, as águias no trono, as corujas os mochos no escuro, sentindo qualquer movimento que lhes possibilite um respasto, os abutres de noite ou de dia sobre as carcaças, disputando-as às hienas e aos chacais.

Os seres que povoam a madrugada são filhos da lua, dão os primeiros passos com a suavidade da luz que a noite guardou dela. E os pensamentos acordam sem a exaltação do dia solar, o calor alterando a mansidão deles, a perturbar o fio que sustenta a vida, numa modorra infecunda, deixando a terra sequiosa, as pétalas emurchecidas.

Conversam sobre o dia que chega, o alimento que tarda, ou a necessidade de manter a temperatura dos ovos frágeis, a atenção aos predadores, o cuidado de manter o ninho asseado quando as crias, ainda penugentas, esperam a plumagem que as há-de identificar pela espécie. Ouvem a voz do vento que fala da chuva a chegar do oeste, ou do calor que o suão carrega e faz secar as ribeiras e as fontes. Falam da vida e de si.

Os homens desenvolveram a linguagem e o raciocínio e perderam a capacidade de conversar a sério sobre a vida. Dizem da economia que floresce no desemprego e na redução de salários. Falam na educação para todos reduzindo escolas no interior e procedendo ao afogamento das escolas públicas em geral. A saúde para todos vota-se na desintegração dos centros de saúde, no abandono de edifícios capazes de minorar o sofrimento dos velhos que somos e se apagam abandonados e sós à esmola de outros velhos impotentes. A justiça para todos sanciona nos tribunais a prescrição dos castigos aos grandes e esquadrinha ao pormenor uma falta, exige o pagamento de selo de um veículo, acrescido de coimas e custas, de 2007, a um emigrado do país desde 2004. Falam demasiado sobre o respeito pelos animais e não têm pejo de divulgar os prazeres obscenos da mesa usando animais vivos sadicamente torturados. Falam demasiado sobre a preservação das espécies e continuam a fazer tudo pela extinção da espécie humana.

E chega o sol e o dia e logo a noite e o telejornal e o benfica e os comentadores. Eu prefiro ir descansar para acolher serena uma outra madrugada.



2 comentários:

Manuel Veiga disse...

delicada e sensível escrita a tua.

superfície de águas calmas, em frémito.

que as madrugadas te sejam sempre serenas.

beijo

M. disse...

Belíssimo o teu texto, belíssimo o poema de Vasco Graça Moura. Só coisas destas nos serenam e dão alento.