quinta-feira, fevereiro 06, 2014

OITO ANOS DEPOIS




Livre não sou, que nem a própria vida
mo consente
Mas a minha aguerrida
teimosia
é quebrar dia a dia
um grilhão da corrente.

Livre não sou, mas quero a liberdade.
Trago-a dentro de mim como um destino.

E vão lá desdizer o sonho do menino
que se afogou e flutua
entre nenúfares de serenidade
depois de ter a lua!

Miguel Torga

 


É compulsivo o movimento da escrita, seja por necessidade de comunicar, de sentir-se apenas vivo ou serenamente gozar o prazer da escrita, principalmente se puder sentar-se diante de um velho caderno aberto e rolar uma caneta entre os dedos, gozar a sensação inigualável de traçar linhas desenhos contornos minúsculos, como quem modela uma escultura, como quem abre uma flor sobre uma tela, como quem ali derrama frutos em taças, delineia um rosto.

Não tão imediato como uma imagem, mas muito mais intimista este desenhar das memórias que se acendem cada vez mais com uma saudade sem tamanho, assim presentes, amores guardados perdidos na fartura da fazenda, os frutos dourados, o mel dos cortiços, quando o mundo ali cabia inteiro, as caçadas, os cães a alegria deles saltando em volta das espingardas, as conversas com os homens da enxada no quintal.

O hábito de acordar ao raiar do dia terá ficado enraizado em mim naquelas manhãs africanas clareando bem cedo, nas idas às perdizes dos cacimbos sem chuva, e continuam a ser o lugar de excelência dos meus dias. Enquanto houve horários de trabalho para cumprir, a utilidade na escolha do período da manhã trouxe-me a vantagem de enconrar as mentes juvenis ainda não alvoroçadas com o correr das horas, o cansaço das outras aulas, encontrar as salas limpas e arrumadas, sem papéis largados, eu própria com o vigor e alegria na medida certa para interagir nas tarefas por vezes duras que me eram exigidas.

Dobraram décadas sobre décadas e só os afectos preenchem as horas que se acumulam depois da manhã. Procurar agora inspiração no desconforto moral que me invade, deixa tudo a desejar. Assim cada vez vou rareando a minha presença neste espaço que não consigo deixar só porque não posso abandonar este filho que me sossegou por dentro quando o mundo ruiu. 

E o mundo ruiu outra vez e eu estou de pé.

 

3 comentários:

Manuel Veiga disse...

raízes que prendem - a partilha de afectos...

beijo

Rocha de Sousa disse...

Ouve-se cada menos o som dos outros, as palavras andam caladas
pelos artes da globalização, co-
mendo tudo em volta.

Rocha de Sousa disse...
Este comentário foi removido pelo autor.