quarta-feira, outubro 23, 2013

ONTEM



Ontem o pregador de verdades dele
Falou outra vez comigo.
Falou do sofrimento das classes que trabalham
(Não do das pessoas que sofrem, que é afinal quem sofre).
Falou da injustiça de uns terem dinheiro,
E de outros terem fome, que não sei se é fome de comer,
Ou se é só fome da sobremesa alheia.
Falou de tudo quanto pudesse fazê-lo zangar-se.
Que feliz deve ser quem pode pensar na infelicidade dos outros!
Que estúpido se não sabe que a infelicidade dos outros é deles.
E não se cura de fora,
Porque sofrer não é ter falta de tinta
Ou o caixote não ter aros de ferro!
Haver injustiça é como haver morte.
Eu nunca daria um passo para alterar
Aquilo a que chamam a injustiça do mundo.
Mil passos que desse para isso
Eram só mil passos.
Aceito a injustiça como aceito uma pedra não ser redonda,
E um sobreiro não ter nascido pinheiro ou carvalho.
Cortei a laranja em duas, e as duas partes não podiam ficar iguais.
Para qual fui injusto — eu, que as vou comer a ambas?
Alberto Caeiro


Olhar para ontem não é despiciendo. É, aliás, a avaliação que todos devemos fazer de quando em vez, não vá o tempo passar mais depressa do que o pensamento e assim termos alguma surpresa nem sempre agradável, como pressupõe - quase sempre - a própria palavra surpresa.

Olhar para ontem (título da mais recente crónica de ALA, na revista Visão) é um exercício de reflexão a requerer uma isenção de jornalista, que nunca é total, todos sabemos como o ser humano é incapaz de olhar do alto sem ser coordenado por insondáveis desígnios de personalidade, caldeada por genética, educação, consciência. Recordo o exemplo estafado daquela abóbora que cresceu mais do que o esperado por terras da Gália e cuja notícia calcorreou os principais jornais do país, do Le Figaro ao Le Monde, Libération ou L'Humanité. Desde a explicação científica da família das curcubitaciae, passando pelos encómios à qualidade da indústria agrícola, à sublimidade das terras e do clima, até à exaltação do trabalhador empenhado, a planta foi sendo colocada no pódio em primeiro, segundo ou terceiro lugar consoante o título do periódico.

O resultado final de olhar para ontem, o objectivo conseguido, depende do estado de espírito do momento. Pode o olhar magoado repousar nas memórias da infância e encontrar o lenitivo para o inconformismo actual, pode a revolta estremecer os alicerces e encontrar a caliça, os cacos, as ruinas carcomidas pela humidade, cobertas de musgo e de silvas, na melhor das hipóteses já os frutos enfeitando as hastes, a madressilva perfumando tudo. Porém, atrás de tudo, no escuro das plantas, no silêncio dos buracos negros, quem sabe o pulsar das agonias, o sofrimento das crueldades sofridas ou o castigo dos remorsos. Pode ser apenas o espinho do preconceito, a picada do sarcasmo, a punição injusta, o medo que gera impotência, aquela dor mansa que atravessa as décadas e se mantem inesquecível no fundo dos tempos.

Foi ontem que o mundo se abriu em decisões precisas, logo depois os cortes, os golpes que condicionaram essas decisões, outros rumos traçados, as separações, os lutos, as vidas novas, as pegadas na terra molhada de lágrimas. 

E hoje a chuva que acalma, a chuva, a água que tudo renova.

1 comentário:

Manuel Veiga disse...

admirável (ia a escrever invejável) esse amável, sábio e sensível distanciamento...

beijo