quarta-feira, julho 03, 2013

COMPLEXIDADE



Que alegria chegar àquela casa, que pena virmo-nos embora para tristeza do inverno, a tristeza das aulas, o suplício dos professores. Já escrevia nessa altura, versos, ninharias. Mas ia ser o maior escritor do mundo, isso era certo. Na minha opinião sou, claro, não vale a pena escrever se não se é o maior escritor do mundo. Infância, ainda sinto o teu mistério, as descobertas diárias, o teu murmúrio no meu sangue. Ainda me acompanhas com, nos intervalos da alegria, tristezas inexplicáveis que passavam depressa, perplexidades inexplicáveis que passavam depressa, angústias inexplicáveis que passavam depressa. Saudades disso também e, de repente, o maravilhamento de novo.

António Lobo Antunes




Na manhã ensonada, palmilho a praia longa solitária sedutora na sua mansidão, a receber o mar em carícias de espuma, o som dele chegando de longe e repetindo-se, a cor quase negra do horizonte onde a neblina breve esconde o recorte das ilhas, cortado mais perto por caracóis brancos enrolados sobre o azul, depois verde-mar de beleza sem medida.

Caminho até aos pescadores que se perfilam ao fundo, junto à foz do rio, alguns a meio da embocadura do Arelho, sobre afloramentos de areia, a maré vazante a permitir a travessia a vau para o Bom Sucesso, onde começam a surgir chapéus-de-sol e pára-ventos coloridos. A praia mantém-se lisa, marcada agora por areia mais grossa, pequeninos seixos marcando a descida da maré e pegadas espaçadas de algum pássaro, talvez gaivotas que voam agora baixo, mais atentas aos despojos humanos do que ao peixe do mar.

A lagoa começa a encher-se de gente, crianças e adultos a aproveitarem a temperatura da água mais amena, mais parada neste virar de maré. Não tarda o mar crescer impante e correr com força lagoa adentro, em corrente forte e quantas vezes traiçoeira para os mais desatentos, que a Natureza é um ser vivo e não se doma, temos nós de nos afeiçoar a ela.

Retomo o caminho do mar, do som do mar, da luminosidade que chega mais forte, das ondas que se desenrolam brancas ao longe, acompanhadas já de pontos negros quietos, à espera do momento de as cavalgar em equilíbrios precários. A praia aberta, sem vento, o cheiro da maresia a entrar pelas narinas traz um momento brevíssimo de regresso à infância, de repente a sensação de faltarem as conchas, as pedras, os caranguejos, a vontade de mergulhar.

Ao cair o meio-dia o sol torna-se feroz, a luminosidade cega e o murmúrio das ondas perde-se atrás das vozes humanas. Regresso ao carro e assombra-me do destempero dos que chegam àquela hora em que o sol fere, crianças pela mão, a irresponsabilidade à solta, num assalto do mundo que esqueci naquelas horas breves e fundas. O meu acordar para a vida que nos espera confusa, a meada que não consegue dobar-se, a meada a enrolar-se cada vez em nós mais apertados, o puxar obstinado do fio quando se deve deixar mais lasso, capaz de dar-se-lhe a volta, voltas, encontrar o caminho de novo. 

1 comentário:

Manuel Veiga disse...

lucidez dorida atravessando o "destempero" dos outros...

beijo