quinta-feira, novembro 01, 2012

OS ÚLTIMOS SANTOS



A pobreza antiga com que o corpo cai
para uma vala. Preso apenas às pérolas
que tinem nas orelhas. Dante deixou-nos resvalar,
com os cânones clássicos, como se o poema
fosse uma escada. É-o, quando as figuras austeras
da Natureza perseguem os mortais. Querem confirmar
a sua configuração. Querem ser
reais, quando se aproximam.
Vai para diante da minha face, ao fundo.
Vem dos recantos, onde já não é a silhueta volúvel
enovelada pelo vento, à janela. Com lentidão
arrasta a forma táctil até à passagem do poema.
Fiama Hasse Pais Brandão



Não sou ninguém. Mesmo quando em cavalgadas por sóis que se apagaram há muito, mesmo quando imperador em galáxias onde a palavra ainda é de ouro, a justiça impera e o trabalho premeia, mesmo quando surpreendo, quando vejo uns olhos fixarem os meus e brilharem só para mim.

Há sempre qualquer coisa que se agiganta e me diz que os meus diamantes são apenas carbono, que as pérolas que uso são lágrimas doridas de um outro ser cujo sofrimento é tão demorado e fundo que se sublima em pedra preciosa, que todo o belo não passa de ilusão de um olhar complacente, que a força e beleza da sinestesia da fruta em odor e cor e sabor e tacto em breve se desmancha em podridão, não sem antes embriagar os incautos num prazer que tira a razão.

Não sou ninguém. Só eu ouço os meus sinos badalarem cá dentro em sonoridades de silêncio, o coração a pulsar e os olhos molhados por uma simples planta, uma trepadeira de folhas carnudas que se enfeita de cachos de flores, também elas de corola espessa como se moldadas em cera, cor de cera, aveludadas e despretensiosas. Encontro-a esporadicamente, recordo o lugar onde a vi pela última vez e sempre me assombro com a sua presença. Quando não resisto em tocá-la ao de leve, ela não reage como o saculirère da minha infância.

É grandioso o poder de sentir por um momento fugaz qualquer lembrança longínqua que logo a seguir queremos rememorar e já não volta, um som, um timbre de voz, um cheiro, um sentir indefinido mas real, um fulgor breve que deixa sequelas por tempo alargado e depois se esvai, como o sonho real de uma noite que na manhã não deixa rasto.

Não sou ninguém. Os passos diluem-se pesados e irregulares como as calçadas, as pedras inexoravelmente enegrecidas pelo cansaço dos anos. Já não tenho voz para acalmar os gritos que ouço cada vez mais intensos, desordenados, quase quase a perderem as razões que a razão não entende.

2 comentários:

Manuel Veiga disse...

somos cinza...

carpe diem - ainda que os passos se diluam...

beijo

Justine disse...

Um belíssimo texto para dizer da tua tristeza( da nossa tristeza), da tua impotência(da nossa impotência)...
Um beijo