sábado, julho 14, 2012

CAMINHOS IMPÉRVIOS



Na minha terra
há uma estrada tão larga
que vai de uma berma à outra

Feita tão de terra
que parece que não foi construída.
Simplesmente descoberta.

Estrada tão comprida
que um homem
pode caminhar sozinho nela.

É uma estrada
por onde não se vai nem se volta.

Uma estrada
feita apenas para desaparecermos.
Mia Couto in «Tradutor de Chuvas»

 
*       Segue um caminho estreitíssimo, da largura de um pé, entrando pela mata, mulheres negras esguias, quindas largas de milho sobre a cabeça num equilíbrio inimitável, crianças às costas, rumo à clareira onde as pedras redondas que afloram do chão esperam os bagos gordos do milho humedecido que há-de tornar-se em farinha macia.
*        
Sentadas, enrolam os panos no centro das pernas afastadas e entoam uma cantiga repetida como se em desgarrada, perguntando uma e respondendo outras em coro, numa melopeia indecifrável, mas soando agradavelmente ao ouvido. Em fundo, as batidas do pilão na pedra marcando o ritmo, outras sacudindo já quindas rasas, atirando ao ar o milho partido, para separar as partes do grão que depois resultam em farinha mais e menos fina.

Os bebés dormem nas sombras próximas em camas de panos enrolados, sombras de árvores ou sombras improvisadas com as quindas despejadas, e novas e velhas cumprem o ritual do trabalho comum. Não raro uma avó encarquilhada entrega a mama ao pequeno que chora, para o acalmar ou adormecer, enquanto a mãe termina a tarefa a ser cumprida.

O mesmo trilho se alonga a caminho do rio, passagem das mulheres para a pesca colectiva em certas épocas do ano, para os homens de zagaia na caça combinada – o gebo – para os bichos em fuga da queimada que os percorrem assustados, as patas, os cascos seguindo os caminhos marcados, que a astúcia do homem evita então pisar. O mesmo caminho do rio onde o gado lambe o sal ao final do dia, onde as rolas se juntam às dezenas para o único tiro de caçadeira – esse gavião que não desce dos céus, apenas troa e fulmina. Ainda e sempre o caminho que bordeja a vala, que sobe à nascente onde a água brota da areia branca e fina da gruta recatada, ladeada de pequenos fetos.

Esses os caminhos da minha terra, as rotas infindas de pessoas e bichos onde tudo acontece, a vida e a morte, poeirentos no cacimbo, enlameados nas chuvas, veredas de todos os sonhos, encantos e pesadelos. Caminhos de areias ainda de África onde era preciso não ter estado, não ter pisado, não ter nascido.

1 comentário:

Manuel Veiga disse...

belo o "chão" que te habita...

beijo