domingo, janeiro 08, 2012

As coisas dos homens

Passa uma borboleta por diante de mim
E pela primeira vez no Universo eu reparo
Que as borboletas não têm cor nem movimento,
Assim como as flores não têm perfume nem cor.
A cor é que tem cor nas asas da borboleta,
No movimento da borboleta o movimento é que se move,
O perfume é que tem perfume no perfume da flor.
A borboleta é apenas borboleta
E a flor é apenas flor.
Fernando Pessoa



Regresso à inebriação dos sentidos fugindo à temperatura real naquele registo das águas murmurantes onde me banho entre rochas e areias, tufos de capim e nascentes de água límpida, ou prosaicamente debaixo de um chuveiro mecânico, invenção dos homens.

Os sentidos acolhem o palpitar de todos os sonhos vividos ou sonhados, afinal é neles que se sustenta todo o movimento que o cérebro comanda, é através deles que a fruta apetece madura ou repugna quando se desfaz em podridão atraindo a ela outra classe de seres que seguem o seu ritmo, as horas contadas mais breves, necessidades cumpridas sem esperas.
 

Só o Homem consegue dominar a natureza guardando-a intacta para quando os sentidos acordam para o desejo dela, assim eles se espraiam a olhar as cores das coisas dos homens ou a seguir o movimento da borboleta ou a fragilidade das asas que se desfazem em pó se apertadas entre os dedos. O tempo que sobra do tempo em que os outros seres procuram a sobrevivência na busca do alimento, na fuga aos predadores, no prolongamento da espécie.

Porque os homens têm tempo para pensar, eu olho-me por dentro e vejo que o meu modo de estar e de ser tem a ver com o meu país, como dizia Drumond, essa parte de mim fora de mim a procurar-me. E porque eu sou dois países num só, penso e repenso e tento encontrar em mim o que é de um e o que é do outro, desejando quantas vezes identificar-me com um só de entre os dois mas não consigo. Como se olha alguém cujo progenitor se conheceu na infância e nele o reconhece se for o pai ou se for a mãe, esquecendo que é um ser diferente e único, ele só, de per si.

 E é assim que eu me penso e me organizo, é assim que eu sonho e que eu vivo, castelã e plebeia, as mãos que escrevem tecem rendas, conduzem a máquina dos tempos que surgem conturbados, sem outra saída, rendidos ao culto do inominável.
 

4 comentários:

Nadine Granad disse...

Que início belo!... Que "Regresso..."!!!


Beijos =)

Manuel Veiga disse...

ponto de encontro de linhas e traços. e cores belíssimas...

por teus dedos te desenhas. e em tuas palavras se tecem rendas de sabedoria...

beijos

Rocha de Sousa disse...

Gostei muito desta aproximação, atra-
vés de Fernando Pessoa, à realidade
da relação do homem com a Natureza e sua verdade integral. Mais um belo
texto na sua já vasta obra bloguista, Jawaa

Casa da Caldeira disse...

Obrigada por esta oportunidade de ler palavras que ganharam mais sentido nas palavras por si escritas.
Como a cor nas asas das borboleta ou como o perfume da flor também as palavras não passariam de meras palavras se não traduzissem pensamentos, emoções e estados de alma pela mão de alguém tão inspirado.
Um abraço da
Ana