domingo, outubro 30, 2011

A lei da educação


Para ser grande, sê inteiro: nada
teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
brilha, porque alta vive.
Fernando Pessoa
 



Conta-se pela Net uma história passada na Noruega, onde um empregado, ao inspeccionar uma câmara frigorífica ao fim do dia, não evitou que a porta se fechasse e ele ficasse preso dentro dela. Ninguém ali voltaria antes do dia seguinte, pelo que a morte o esperava naquela câmara frigorífica. Porém o vigilante da empresa foi resgatá-lo a tempo. Ao ser-lhe perguntada a razão de ter ido abrir a câmara de frio, o que não fazia parte das funções que lhe eram atribuídas, ele explicou: «Trabalho nesta empresa há 35 anos e, de entre as centenas de empregados entram e saem aqui todos os dias, é o único que me cumprimenta ao chegar e se despede quando sai. Esta manhã corrrespondi à sua saudação, mas não dei por que saísse e estranhei. Por isso o procurei, imaginando que pudesse ter acontecido alguma coisa de anormal.»

Vem isto a propósito de me ter chegado às mãos um livro de uma senhora australiana que tem por título «As Boas Maneiras Ainda São Importantes?» Ela questiona precisamente a oportunidade de se observarem e cultivarem as boas maneiras na actual conjuntura da falta de tempo que assola as populações na vida moderna. A autora faz um périplo por momentos marcantes da história do homem: o primeiro aperto de mão dos primitivos num sinal de que não tinham armas, o tempo de Péricles e a importância da cultura e boas maneiras para a aprovação geral entre pares dentro da comunidade ateniense por oposição à bélica cultura espartana, a imposição de normas de etiqueta na corte de Versailles ao tempo de Louis XIV, refere a utilidade das ordens religiosas na formação do auto controlo do indivíduo ao longo dos tempos.

Com propriedade, a autora conclui que a falta de educação se vai colmatando com leis. Leis cada vez mais restritivas, impostas, redutoras de liberdade, leis essas que não são aplicadas, não são aplicáveis e por isso acabam por diminuir o poder e a reputação da Lei, como tal. Tudo seria mais fácil se os gestos fossem naturalmente generosos em observação de simples normas de educação.

É afinal globalizado este sentimento de falta de educação que se vai institucionalizando em nome da modernidade, da falta de tempo, do trabalho, do afã do dinheiro, das férias, da ocupação de todos os momentos da existência em coisas ditas úteis e inadiáveis. Sem tempo para a paz, para pensar, para olhar, para sentir. Sem tempo para a comunidade, para a solidariedade, para simplesmente descansar. Porque a vida é tão longa.


segunda-feira, outubro 24, 2011

Perspectivas

Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?
Queria falar contigo,
dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Eugénio de Andrade



Sensivelmente a meio da Ilha, não do lado do mar batido mas do interior da baía, havia um casco velhíssimo de navio junto à praia, meio coberto de areia, com uma grande parte fora de água na maré baixa, a ferrugem roendo a pintar os ferros de acobreado.

A água era límpida e os meus olhos não viam o navio, não questionavam a sua presença ali, se algum naufrágio, se gentes perecendo numa qualquer faina ou que memórias guardava aquele esqueleto onde agora se construía vida.

Eu passava sobre a água em equilíbrio por sobre os ferros até onde podia, o mais longe possível da praia sem ondas, olhando fascinada o mundo agitado que se processava por baixo de mim, pequena deusa olhando aqueles esconderijos, nichos, onde os peixes deslizavam velozmente por entre os ferros esburacados, mexilhões e lapas cobrindo tudo como musgo a adoçar as ruínas na terra, ouriços e estrelas do mar pousados no fundo de areia clara.

Registo na memória, dessa época,  aquele quadro sem cores, e gostaria de olhá-lo, olhar-me de outra forma, em uma outra perspectiva. Com o assombro me percorreu quando me vi diante de uma imagem de um ramo de jarros, flores completamente brancas, e percebi que deveria concentrar-me para o desenhar, não nas flores, mas no sombreado em volta delas, apenas nisso, para que elas emergissem na sua brancura, sem que o papel fosse maculado.

Ver o mundo do avesso é um exercício que deveríamos praticar com mais frequência: olhar o mundo como deuses, o planeta azul rolando na escuridão do cosmos, ou sentir-se bicho, árvore, pedra milenar, acossado pela insatisfação dos homens. O resultado final será certamente o pretendido, a gravura perfeita até uma nova era que já não será a nossa.


sábado, outubro 15, 2011

Ser escritor

Há quem me pergunte na rua
se eu sou quem sou, e eu não sei responder,
porque eu já não sou quem fui
nem sei quem irei ser, e odeio as rimas,
iguais a esta, que se intrometem no texto
empurrando-o para o lado da música, traiçoeiras,
como se daí pudesse vir redenção ou resgate.
Eu não sei quem sou, nem que alma tenho,
ou sequer se a tenho, e, no caso de o saber,
se deva confessá-lo de forma a que possa
ser lido, repetido e usado contra mim. Eu não sei nada.
José Jorge Letria



Encontrei Lobo Antunes ontem, por um acaso da novas tecnologias, ao virar da rua que elas me trazem para dento de casa. Sereno como sempre o conheci, olhos demasiado azuis, falando devagar misturado nos livros das estantes e no fumo do cigarro a marcar a diferença.

Dizia Cultura, disse Cultura muitas vezes, e como em Portugal se tem medo da Cultura, a cultura com maiúscula porque esta palavra, além de aculturada por outras vertentes tem rios de significados. Falava de Flaubert quando comecei a ouvi-lo; como Flaubert, que morreu aos 59 anos, passou grande parte da sua vida a odiar Bovary, porque cedo deu conta de que ela iria permanecer depois dele, ela, simples personagem criada por si, ainda por cima uma p. Leituras pessoais.

Ficou escrito que Flaubert viveu sim, incomodado, perseguido pela personagem que criara porque ela tomou forma, cresceu e ofuscou - principalmente isso - ofuscou todo o resto da sua produção literária, obras maiores escritas depois de Mme Bovary.

Nem sempre, quase nunca, o próprio escritor sabe, pode, avaliar o valor maior ou menor de uma obra sua em relação às outras. Como um pintor ou um escultor ou realizador de qualquer outra obra de arte. Cada uma diz respeito a um tempo próprio e marca a evolução do seu autor como pessoa, transmite o seu processo de aprendizagem e leitura do mundo num momento dado do seu percurso de vida. Cada uma avulta num dado momento do mundo, porque mais convincente, mais condizente com a época.

Lobo Antunes é um senhor. Pode dizer o que quiser. Reconhecido em vida como um dos maiores, senão mesmo o maior escritor vivo português dada a extensão e repercussão da sua obra já produzida, Lobo Antunes disse naturalmente, sem humildade mas também sem acinte, a maior das verdades: escrever livros não é sinónimo de ser-se escritor.

domingo, outubro 09, 2011

Constatação


A escrita metódica distrai-me da presente condição dos homens. A certeza de que está tudo escrito anula-nos ou envaidece-nos. Conheço distritos onde os jovens se ajoelham diante dos livros e lhes beijam barbaramente as páginas, mas não sabem decifrar uma única letra. As epidemias, as discórdias heréticas, as peregrinações, que inevitavelmente degeneram em banditismo, têm dizimado a população. Creio já ter mencionado os suicídios, de ano para ano cada vez mais frequentes. Talvez me enganem a velhice e o temor, mas tenho a suspeita de que a espécie humana — a única — está prestes a extinguir-se e que a Biblioteca perdurará: iluminada, solitária, infinita, perfeitamente imóvel, armada de volumes preciosos, inútil, incorruptível, secreta.

Jorge Luís Borges in «A Biblioteca de Babel»






Passei, esta semana que finda, junto ao número 107 da Rua dos Heróis da Grande Guerra, em Caldas da Rainha, e fiquei triste. 
Sabia que a livraria 107 fechava as portas no fim de Setembro, mas ver a porta cerrada a lembrar tudo o que se perdeu, ler as palavras de despedida de Isabel Castanheira, fez-me sentir triste, triste. Sempre conhecera ali aquele espaço carregado de livros até ao tecto, um espaço estreito e fundo onde os senhores eram mesmo os livros. Os livros e os gatos com nomes de autores, caricaturas de Bordalo e de bichos mitológicos, fotografias de escritores, vigiando tudo.

Não foi a primeira que fechou naquela cidade, mas aquela, a mais antiga, a livraria de referência desde há décadas, por iniciativa de uma jovem batalhadora até ao limite, foi mais dorida. Não foi possível combater as sucessivas batalhas contra o desinteresse, a iliteracia crescente, contra os lugares de consumo de outros bens, as estações de correios, as grandes superfícies, os supermercados das pequenas cidades onde as prateleiras de livros se alinham constrangedoramente junto ao local de venda de peixe e de carne, onde as pessoas se demoram à espera do número da ficha que têm guardada na mão.

A cultura tentando assim chegar a todos, tentando seduzir os que dela se distanciam, porque a cultura custa dinheiro em Portugal. E ainda por cima com os museus a deixarem de ter entrada livre aos domingos. Quem lá ia por gosto, com poucos cobres no bolso, deixa de ir, porque há outras necessidades mais prementes, há bocas pequenas e grandes para alimentar em casa.

Perante uma tão insólita medida, só me ocorre concluir que esta medida vai desagravar poderosamente o défice do Estado, vai reduzir significativamente a dívida soberana, e vai com certeza tornar os pobres ainda mais pobres.

Assim se alcançam objectivos.