sábado, outubro 15, 2011

Ser escritor

Há quem me pergunte na rua
se eu sou quem sou, e eu não sei responder,
porque eu já não sou quem fui
nem sei quem irei ser, e odeio as rimas,
iguais a esta, que se intrometem no texto
empurrando-o para o lado da música, traiçoeiras,
como se daí pudesse vir redenção ou resgate.
Eu não sei quem sou, nem que alma tenho,
ou sequer se a tenho, e, no caso de o saber,
se deva confessá-lo de forma a que possa
ser lido, repetido e usado contra mim. Eu não sei nada.
José Jorge Letria



Encontrei Lobo Antunes ontem, por um acaso da novas tecnologias, ao virar da rua que elas me trazem para dento de casa. Sereno como sempre o conheci, olhos demasiado azuis, falando devagar misturado nos livros das estantes e no fumo do cigarro a marcar a diferença.

Dizia Cultura, disse Cultura muitas vezes, e como em Portugal se tem medo da Cultura, a cultura com maiúscula porque esta palavra, além de aculturada por outras vertentes tem rios de significados. Falava de Flaubert quando comecei a ouvi-lo; como Flaubert, que morreu aos 59 anos, passou grande parte da sua vida a odiar Bovary, porque cedo deu conta de que ela iria permanecer depois dele, ela, simples personagem criada por si, ainda por cima uma p. Leituras pessoais.

Ficou escrito que Flaubert viveu sim, incomodado, perseguido pela personagem que criara porque ela tomou forma, cresceu e ofuscou - principalmente isso - ofuscou todo o resto da sua produção literária, obras maiores escritas depois de Mme Bovary.

Nem sempre, quase nunca, o próprio escritor sabe, pode, avaliar o valor maior ou menor de uma obra sua em relação às outras. Como um pintor ou um escultor ou realizador de qualquer outra obra de arte. Cada uma diz respeito a um tempo próprio e marca a evolução do seu autor como pessoa, transmite o seu processo de aprendizagem e leitura do mundo num momento dado do seu percurso de vida. Cada uma avulta num dado momento do mundo, porque mais convincente, mais condizente com a época.

Lobo Antunes é um senhor. Pode dizer o que quiser. Reconhecido em vida como um dos maiores, senão mesmo o maior escritor vivo português dada a extensão e repercussão da sua obra já produzida, Lobo Antunes disse naturalmente, sem humildade mas também sem acinte, a maior das verdades: escrever livros não é sinónimo de ser-se escritor.

5 comentários:

Manuel Veiga disse...

sim, duas ou três afirmações lapidares...

... que desculpam o inevitavel "narcisismo" de um grande escritor.

beijo

Justine disse...

Pois não! Nisso concordo com ele, embora não concorde com muita coisa que ele diz...

Rocha de Sousa disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Rocha de Sousa disse...

Estive hoje de manhã, na livraria,a
ler o novo Lobo Antunes, clássico à
sua maneira, dizendo claramente uma
paisagem que via, entre vozes que o
povoam. Há dias (e obras) em que me
sinto surpreendido e ansioso ao lê-
lo.
Depois ele diz coisas inesperadas,
complexas ou óbvias, quando lhe fa-
zem perguntas. Mentir é, por vezes,
a única forma de chegar à verdade.
E aquela dos que escrevem livros e
dos escritores, parecendo trocadi-
lho, é uma enorme verdade.

M disse...

Vou-te espreitando aqui, Jawaa, e saio sempre com o pensamento enriquecido.