domingo, maio 08, 2011

Fidelidade



Diz-me devagar coisa nenhuma, assim
como só a presença com que me perdoas
esta fidelidade ao meu destino.
Quanto assim não digas é por mim
que o dizes. E os destinos vivem-se
como outra vida. Ou como solidão.
E quem lá entra? E quem lá pode estar
mais que o momento de estar só consigo?

Diz-me assim devagar coisa nenhuma:
o que à morte se diria, se ela ouvisse,
ou se diria aos mortos, se voltassem.
Jorge de Sena

 
Ouço a chuva lá fora caindo devagar, incerta, escuto para que possa sentir a verdade dela.

Contar os anos por rugas e cãs dá o poder dos passos imensos que mergulham no tempo, nos lugares perdidos, comparando os campos, as margens dos rios, o tamanho dos lagos, a lonjura dos horizontes. Eu não posso ser senão da terra onde nasci. E ainda que seja um lugar de ninguém, como Orfeu, eu procuro Eurídice, porque os espíritos disseram que era possível.

Ver, olhar, andar para trás no tempo, passear no reino dos mortos, não me dá o direito de tocar, de alterar coisa nenhuma, muito menos de guardar para mim algo mais do que a memória. Nem mais é preciso, nem mais importa, porque a fortuna de chegar aqui, de entrar no reino dos deuses, é um prazer sem tamanho, quase dor, néctar sagrado que nem todos podem degustar. Não ter nada e ter tudo. Não ser dona de nada e possuir o mundo de Zeus, de Poseidon e Hades. Ser como Prosérpina, habitar dois mundos, a complementaridade deles.

A sabedoria inteira na simplicidade das histórias dos deuses antigos, a mitologia a anunciar as histórias dos deuses recentes, a soberba (poder), a avareza (offshors), a gula (capital), a luxúria (pedofilia), a ira (desporto), a inveja e a preguiça iludindo tudo. No Ocidente, dois mil anos de Cristianismo não dirimiram os pecados capitais, antes agudizaram o seu apetite. Na outra face da Terra, nem as religiões de Abraão nem as filosofias orientais impediram a globalização destes desejos humanos.

Nas franjas do mundo, sobrevivem as ninfas, as nereides, os faunos, os seguidores de Pã.

Ando no seu encalço.

4 comentários:

Rocha de Sousa disse...

Diz-me, devagar, coisa nenhuma. Se-
na lá sabia da sua solidão e o que
escreveu recente-se/sente-se disso.
No fundo, ele anunciava a degrada-
ção civilizacional em que vivemos,
sintomas que parecem colocar-nos no
limite do abismo.
É bom senti-la, Iria, procurando algo que talvez possa dar-lhe a chave de um atalho salvador.

Manuel Veiga disse...

a memória. a matriz e o eterno percurso das dores do Mundo.

belíssimas e sábias palvras!

beijos

Justine disse...

Que os consigas encontrar, minha amiga,e con eles dares algum sentido a este mundo que, tal como está, é para substituir quanto antes!
(o teu texto, uma beleza!)

bettips disse...

"Andam faunos pelos bosques"
... aqui e ali os procuramos
que são o nosso remédio, a nossa água, a nossa vida que é avessa aos "demónios recentes".
Bjs I.