domingo, fevereiro 20, 2011

Passos de dança

O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história.
Não direi suspiros ao anoitecer, a paisagem vista na janela.
Não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida.
Não fugirei para ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.

Carlos Drumond de Andrade


Talvez a chuva nos dê uma trégua neste domingo que acorda, uma trégua à magnólia para que as flores se encham de sol, uma trégua a mim para que tudo se aquiete, uma trégua a todos os que precisam de retemperar forças para iniciar mais uma semana de trabalho. Afinal o domingo é dia de descanso, assim foi para o Senhor que nos criou, assim reza a Bíblia, o sétimo dia.

Mas os Homens são mesmo complicados na interpretação das coisas ditas sagradas e o sétimo dia tem que se lhe diga. Objectivamente, linguisticamente falando, os portugueses descansam no primeiro dia, pois amanhã já é o dia segundo de feira. Se quisermos extrapolar e ir por aí fora, isto diz muita coisa acerca do nosso povo. Este povo múltiplo onde cada um se rege como cada qual e onde todos se vão entendendo, diga-se em abono da verdade.

Acerca dos dias de folga semanais, recordo bem uns vizinhos dos tempos de infância, cujo filho andava no colégio comigo, foi meu colega de carteira em algumas aulas onde os alunos eram colocados por ordem alfabética, ele chamava-se João Emílio. Nunca ia às aulas ao sábado, era-lhe permitido devido à sua religião, era protestante, e o dia de descanso para a sua família era ao sábado, não ao domingo. E eu sei bem que era um descanso levado a sério, porque a empregada da casa passava o dia no fundo do quintal a costurar, a fazer as coisas dela, porque em casa não lhe era permitido fazer rigorosamente nada, a louça acumulava-se numa enorme bacia dentro de água para ser lavada no dia seguinte, supostamente o dia de descanso da empregada que professava o catolicismo.

Afinal, gerir os comportamentos e as liberdades de cada um nem sempre é justo para todos, nem sempre é fácil, muito menos se todos quiserem tomar ao pé da letra tudo o que se faz ou diz. Há que dar corda ao pensamento, dar conta que a tolerância é a pedra com que tudo se constrói, é a batuta que rege os comportamentos, os afectos, tanto mais fácil se estes estiverem realmente bem treinados e os instrumentos afinados pelo respeito pelo outro.

3 comentários:

Rocha de Sousa disse...

Quem é esta gente que guarda a po-
bre empregada contra o descanso, a trabalhar linhas e reza para que o
sol chegue e o sol não chega e con-
tinuam a guardar a rapariga no mes-
mo sítio até a luz atingir o limo- eiro para gabar as horas perdidas?

Manuel Veiga disse...

os dogmas são (ainda) o mal dos Tempos.

é um prazer sempre acompanhar e tua envolvente escrita - limpida. subtil. inteligente...

beijos

Justine disse...

A riqueza de uma cultura miscigenada...é daí também que pode nascer a tolerância!