quinta-feira, janeiro 27, 2011

Respirar


Como se não tivesse substância e de membros apagados.
Desejaria enrolar-me numa folha e dormir na sombra.
E germinar no sono, germinar na árvore.
Tudo acabaria na noite, lentamente, sob uma chuva densa.
Tudo acabaria pelo mais alto desejo num sorriso de nada.
No encontro e no abandono, na última nudez,
respiraria ao ritmo do vento, na relação mais viva.
Seria de novo o gérmen que fui, o rosto indivisível.
E ébrias as palavras diriam o vinho e a argila
e o repouso do ser no ser, os seus obscuros terraços.
Entre rumores e rios, a morte perder-se-ia.
António Ramos Rosa


 
Às vezes o tempo passa mais devagar, assim como que um balão enchendo-se de ar pela boca de uma criança. Sabe-se que vai crescer e voar bem alto se o não prenderem, mas em qualquer momento sabemos que vai rebentar.

Entretanto enche de alegria os olhos pelo colorido, a leveza, a transparência e a forma. Redondo como a lua, como a terra, como um planeta pequenino onde cabem todos os sonhos de uma criança. Até o sonho de querer subir alto com ele, como ele. Sem medos. O pulsar apressado nas veias não é de inquietação, é de excitação e alegria.

Em tempos gratos de pausa conseguida, tudo acontece devagar, como as manhãs abrindo nas madrugadas de bruma, a luz coando pelo nevoeiro, o silêncio esquecido da noite quebrado já pelas poeiras do ruído que cresce. Seja o chilrear dos ninhos, o bater das asas, a codorniz fugindo, o rastejar dos bichos, o cão parado de pata erguida à espera do que não acontece, o tiro que não ouve. Ainda.

Seja o barulho dos carros com gente dentro, correndo em fúria pelas serpentes de asfalto, gente cansada, gente com sono, gente fazendo a barba, pintando os olhos, os lábios, gente de telefone na mão em despedidas que não fez, em recomendações atrasadas, em promessas adiadas.

Gente que não tem tempo para olhar a mão pousada àespera de um afago.
Gente que deixa passar a vida sem ver.

3 comentários:

Justine disse...

O tempo via-se saboreando melhor à medida que vai escasseando. E à medida que o tempo nos escasseia, vamos limpando a vida do supérfluo e guardando apenas o essencial, como o riso da criança, a beleza de um gato, o afago de uma mão. Tu sabes!
Beijo

Justine disse...

Queria dizer "o tempo vai-se saboreando..."
Mais um beijo:)))

Manuel Veiga disse...

a voracidade do nosso (?) tempo! com musical "tempo poético" em fundo. excelente composição!

subtil e bela.

beijo