quarta-feira, janeiro 19, 2011

Dificuldade

A torre albergava sinos que dobravam aos domingos.
Tínhamo-nos enganado rotundamente sobre  a amnésia de Albi. Estranha e assustadoramente, a Catedral de Sainte-Cécile nunca irá permitir que os habitantes da cidade se esqueçam das suas ligações com os Albigenses. Erigida entre 1282 e 1392, esta construção é um compacto ferrabrás que amesquinha e domina os seus vizinhos. Não existe um transcepto; assim, a igreja nem sequer  possui o formato redentor da cruz. Durante séculos, apenas teve um pequeno portal. Contrariamente às outras grandes catedrais de Paris, Chartres, Reims, Bourges, Rouen e Amiens, não havia desordenados mercados sob as altaneiras abóbadas de Sainte-Cécile, nem peregrinos a ressonar dormindo pelo chão, nem bostas de gado para limpar ao chegar a manhã, nem amplos portais que  permitissem a entrada de ar respirado por homens mortais. O exterior da igreja era – e continua a ser – um monumento ao poder.
Stephen O’Shea  in «A Heresia dos Cátaros»

O poder corrompe.
Todas as variadíssimas e infindáveis sendas do poder, até o do amor. Nem há dito popular mais firme e mais enraizado nas profundezas de nós, pois faz parte da idiossincrasia de qualquer ser humano a ânsia de poder. Mesmo os mais simples, os mais ingénuos, os mais puros. As crianças procuram dominar desde o berço, com dias de vida. Faz parte da luta, da nossa luta pela sobrevivência.
Crescer significa adquirir consciência do poder que se desenvolve dentro de nós por cada ano, por cada degrau que se sobe na escada da vida. Crescer é ter a sabedoria de usar a lucidez para estabelecer os próprios limites e conhecer os limites dos outros. Dito assim, com a verdadeira percepção de nós e da missão que nos cumpre, nada é fácil. E só nos parece difícil quando temos noção da complexidade disso.

Assim, a vida decorre na fragilidade do acontecer, e na facilidade de deixar passar os dias, um sobre do outro. Todavia a hora de descanso acontece, ainda que raramente, porque o poder da vida é intenso, porque o poder de ser-se alguém – e nem sequer falo no poder mefistofélico do TER – nos faz esquecer a pausa devida para o equilíbrio, quantas vezes imposta por uma doença súbita do corpo. É preferível que aconteça por motivação sã da consciência, para que não se repita a construção de uma Sainte-Cécile, O Profeta pregou a igualdade, não a iniquidade.

Às vezes sinto-me um cátaro perdido no coração de Portugal.

3 comentários:

Justine disse...

Fico sempre fascinada com a relação poder/alteração de carácter. Inevitável? Humano? A verdade é que tantas vezes nos desumaniza, se faltar a força e a lucidez de que falas...

Manuel Veiga disse...

deslumbrante texto. luminoso...
a solidão dos espíritos eleitos.

beijos

Valquíria Calado disse...

Olá, um abraço de paz pra seu coração.

“O verdadeiro amor ferve, mas não derrama. O amor a Deus, assim como é sincero e sem hipocrisia, é constante e sem apostasia”.

Thomas Watson