domingo, abril 25, 2010

Depois do Adeus



Quis saber quem sou, o que faço aqui
Quem me abandonou, de quem me esqueci
Perguntei por mim, quis saber de nós
Mas o mar não me traz
Tua voz.
Em silêncio, amor, em tristeza e fim
Eu te sinto em flor, eu te sofro em mim
Eu
te lembro, assim
Partir é morrer como amar
É ganhar e perder.
Canção de Abril




Ler a nota de abertura duma revista semanal nesta manhã cálida, é suficiente para acordar memórias, vibrações, aquelas sensações indizíveis que mexem cá dentro quando se escreve do outro lado da barricada, realmente na construção de uma «memória colectiva em que se alicerça a identidade de um povo».

Tem pouco sentido nos jovens que vivem o Portugal de hoje, na faixa etária que chega aos 40 anos, porque desses, ninguém sabe o que foi Abril, o que significou para os que cresceram e se formaram dentro da ditadura. Nunca é demais lembrar-lhes como se depositaram esperanças de todas as vidas nessa Revolução dos Cravos de cor vibrante e intensa, destemperada como a água da represa quando se abre uma comporta. Brota esplendorosa em véus de noiva lavrados de espuma, concretizando os projectos de para sempre, até ao dia em que a seca vai reduzindo o caudal, até ao dia em que o rio não é mais do que um regato e a comporta nem tem mais razão para abrir.  

Porém, é preciso que se procure a origem da escassez, que se encontre dentro de nós a razão de ter descido o nível das águas, que outros afluentes foram desviados a montante, que sedes de excessos, que esquecimentos, que desatenções, que faltas de empenho, de amor pelo outro. Trinta e seis anos depois, continua a haver portugueses a morrerem de fome, a emigrarem, a irem para a guerra, não para defender outros portugueses, mas europeus e asiáticos. Continua a não haver, como nunca houve, espírito de grupo, de união, de solidariedade, de civismo, não há uma cultura instalada que nos ensine como a democracia joga falso em Portugal. É que a democracia dá expressão à maioria e Portugal continua a ser um país de gente inculta (ainda que muitos saídos das universidades e pólos universitários que cobrem o país) no que respeita aos valores fundamentais que nada têm a ver com euros. Assim, a maioria que ganha obriga à submissão da minoria que não sofre de iliteracia.

A Democracia em Portugal nunca vai funcionar em pleno, enquanto a Educação não for o princípio e o fim de todos nós.

quarta-feira, abril 21, 2010

Como as pedras


Acho que estou quase no fim. Vou despedir-me. Que trabalheira sorrir, apertar mãos. Que trabalheira anoitecer, que falta de dignidade a velhice e a doença. Óculos. Dificuldades nos ossos. Lentas misérias.
Quase no fim, disse eu. Subir para o quarto, sentar-me à mesa, fechar os olhos antes de começar. A Serra da Estrela inteira à minha frente, luzes de Seia, de Gouveia, de outras terras. Da varanda dos meus avós o alumínio dos grilos raspando, raspando. Continuarão depois de mim, continuarão para sempre, eternos como as pedras.

António Lobo Antunes in «Terceiro Livro de Crónicas




Acordo em mim a suavidade da manhã entre o orvalho da noite pousado sobre os botões de rosa a desabrochar e o esplendor daquela outra janela aberta para a Primavera.

Do outro lado do oceano, lá onde o coração se acolhe nas maravilhas da modernidade ainda mal desperta, numa comunicação que toca as raias do sonho, vejo florir a cerejeira, os plátanos cobrir-se de verde novo, as orquídeas desfilando em trajes coloridos, apresentando a nova estação. E o bichano enorme, senhor dos espaços, dono daquela janela sobre os pássaros e os esquilos, repousa estendido no parapeito absorvendo todo o sol que perdera no Inverno frio, atento às vibrações, ao despontar de cada folha nova. O pulsar da natureza, o pulsar de nós, vivo sob o manto frio da neve como dormem os bolbos que acordam ao primeiro chamado do sol e do calor que se agiganta.

Mais fundo, no recôndito da camada exterior da Terra, a pedra ajusta-se, acomoda-se, estremece a espaços, declarando a sua força oculta. E das paisagens de neve pura surge então um sobressalto vindo das entranhas, intenso, brutal, aterrador. Mostra aos homens que o espírito da Terra está vivo, é ele que controla, que desgoverna, que força a que o mundo se olhe de outras perspectivas, esquecidas, perdidas, recuperadas agora, tão mais estremecidas.


quinta-feira, abril 15, 2010

A chuva, de novo

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considere a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Carlos Drumond de Andrade


Outra vez o dilúvio. A água batendo com força nos telhados, o céu de comportas abertas pela madrugada fora. 

Ontem Lisboa como já não lembrava, a chuva em rajadas irreverentes acordando risos sob guarda-chuvas e gabardines incapazes de cumprir o seu dever, incapazes de evitar que a água ensopasse as roupas de quem foi apanhado na rua. 

Agora o vento corre nas caleiras do telhado. A chuva cai mais mansa, ininterruptamente, mantendo o brilho das folhas, lavando os botões de rosa ainda fechados, abrindo o sorriso aos cravos. Cá dentro, a serenidade toma as rédeas das cavalgadas sem tino pelas anharas do tempo, os castelos de salalé dos Setembros do meu planalto soltando asas, nuvens de insectos entontecidos na noite, servindo de pasto às aves.

Aqui, o Abril floresce depois do Inverno duro, tal como o Setembro das minhas memórias trazia as primeiras chuvas depois do cacimbo agreste, com o cheiro a terra molhada a evolar-se do chão quente, as nuvens a surgirem no horizonte ao fim do dia, carregadas de chuva ou pintando céus de cores inigualáveis. Neste hemisfério, nesta latitude, Setembro traz consigo a suavidade do Outono depois do Estio escaldante. 

É o tempo mais bonito do ano, as noites mais apetecidas. 

Como o Outono da vida.