sexta-feira, agosto 13, 2010

Incertezas



Quando se é jovem, prefere-se os meses vulgares, a plenitude das estações. À medida que se envelhece, começa-se a gostar das épocas intermédias, dos meses que não conseguem decidir-se. Talvez seja uma maneira de admitir que as coisas não podem ter para sempre a mesma certeza.

Julian Barnes, in «O Papagaio de Flaubert»




Onde é que eu já li que o Homem pode fazer de Deus?

Quantas vezes se deseja ter o dom da omnipotência que Lhe atribuem, mas não se escolhe, talvez Ele escolha o momento e nunca coincide com o que nós desejamos. Como é que eu posso ser crente? Recuso completamente esse deus castigador que as três grandes religiões de Abraão nos legaram, embora compreenda a necessidade delas para obviar os excessos dos homens da terra, para melhorar o sentido da vida, para criar a mens sana in corpore sano. Porém o homem usou-as no pior sentido, adulterou os ideais de todas as formas e arvorou-se através delas em senhor do mundo dos outros para proveito próprio.

Não quero, não quero, não quero usar-me na sua pele para meu proveito, mas a verdade é que o sofrimento é um reino em que me debato para não ocupar. E esta ideia de sofrimento colou-se no meu imaginário pela via da religião que eu hoje recuso, porque a minha razão me diz que morrer é só o fim da vida. E é natural entre os bichos matar para saciar a fome, morrer para dar lugar aos outros. Normalmente morrem os menos aptos, os mais fracos, também os que foram grandes e perderam a força.

O companheiro leal das horas dos meus dias mais e menos bons, das noites sem sono, aquele ser minúsculo que preencheu vazios inenarráveis, que adoptou a nossa família como a sua matilha há quase 12 anos, jaz há três dias na sua cesta, agravada a sua insuficiências renal, sem forças para andar, comer, beber, gemer sequer. Os seus olhos vêem mal, continua a ouvir, porém, como as pessoas, no fim, dizem. No Hospital Veterinário, propõem-me fazer de deus, pobre deus misericordioso que não pode prometer-lhe a eternidade, apenas um sono mais longo e sem sofrimento. 

Mas, por enquanto, vai reagindo ao soro diário, ainda mostra que quer estar connosco, embora os médicos achem que ele, deixando de comer, está a dizer-nos que não. Depois, não tenho a certeza de conseguir enfrentar essa enorme responsabilidade. Acaso terei sequer esse direito?

5 comentários:

Rocha de Sousa disse...

Só o homem pode fazer de Deus, na
relatividade do Universo inteiro,
porque foi ele quem O inventou. De
tanto que quis para si, inventou um
Deus impossível -- e,daí, a sua vi-
da sem sentido, apesar da razão que explica muita coisa e o seu próprio erro.
A compreensão da natureza da vida, um sopro de tempo sem medida, é que nos dá o direito de ajudar a
morrer.Não passe a outros esse di-
reito:quem amou e ama esse ser de
tal forma, é quem pode acabar-lhe
com a agonia, um bocado de «vida»
ainda mais inútil. A sua coragem
pode vir da razão, a falta dela
pode residir na subjectividade do
nosso medo, desde o inconsciente
profundo.
Desejo-lhe força e paz.

Justine disse...

Jawaa, o meu grande abraço neste momento de sofrimento. Acabaste de anunciar a morte do Matisse, no Chat Gris. Sei que queres silêncio. Deixo-te com a minha solidariedade e um beijo amigo.

Manuel Veiga disse...

boa questão a tua - seja gato ou homem.

teremos direito?

atrevo-me a dizer que apenas da nossa própria vida!

nada aqui é fútil!

beijos.

M. disse...

O teu sentir tão bem expresso nas tuas palavras. De uma enorme beleza.

Anónimo disse...

Ah...não sabia. Decerto, precisaremos de Deus nas horas aflitas, quando não sobra ninguém. Duma pausa do destino girando à volta.
São decerto horas inenarráveis, estas, as dos nossos amigos. Nunca as superaremos porque o que nos deram foi único.
Calam-se os pássaros e as palavras.
Um abraço muito terno, I.
da sempre (presente) Bettips