terça-feira, setembro 23, 2008

Referências

O branco dos livros aviva-se extraordinariamente, tem o deslumbramento de uma cal intensa, de um leite fresco iluminado por dentro. Mil vezes eu já vi esta iluminação de vertigem e já a terei anotado. Mas ela tem em si um milagre bastante para ser sempre pela primeira vez. E tudo o que se sente nunca se aprendeu de cor como uma ideia que se teve. A vida é tão extraordinária em tudo quanto a revela. Perdemos tanto tempo a saber tanta coisa e o mais simples é tão cheio de infinito. A nossa mente e o nosso olhar estão obstruídos por uma massa espessa de um saber secundário. Olhar apenas, olhar. O que é simples é que é complexo, de uma complexidade onde cabe o universo.

Vergílio Ferreira


Nem há domingo sem sol e ele chegou vibrante, depois da chuva, deixando aquela luz de fim de dia que borda a ouro as pétalas envelhecidas já cor de sépia e se infiltra nas parras afagando os cachos orvalhados que pendem maduros e oferecidos.
A beleza acontece em cada momento nosso, consoante outros momentos de outros seres que se conjugam para proporcionar um instante de luz. Quase sempre um acto solitário e tem um travo doloroso. Se tem o condão de ser partilhado, é um deslumbramento.
Mas a verdade da beleza tem o valor de qualquer verdade: tarde ou cedo se acende outro foco de luz a pôr em causa o perfil desenhado na caverna. Este pensar é corroborado de forma perfeita num daqueles documentos, de autor desconhecido, que circulam no espaço Web. Limita-se a referir, de forma muito sucinta, máximas dos cinco Judeus que mais mudaram o mundo: Moisés – a lei é tudo; Jesus – o amor é tudo; Marx – o capital é tudo; Freud – o sexo é tudo. Einstein não contesta qualquer dos temas, porém a todos arrasa de uma cegada: o «tudo» é relativo. 
São as referências que constroem, que suportam a beleza e a verdade em cada um de nós. Se falham as referências quebra-se o equilíbrio e há que repor tudo de novo. Nem sempre é fácil.
O mar da ilha de Luanda, da restinga do Lobito, da praia morena de Benguela; os rios, a travessia em jangada do Kunene, do Zambeze, do Lucala; o Kuando, o Keve, as lagoas, a vala. A nascente. As águas quentes do Lubiri, a Ilha dos Amores no Kuito. O verde intenso da vegetação dos trópicos, os tons de areia e de barro, da praia, da anhara e do capim seco, o negro das queimadas, o cinza das tempestades. Mas o arco-íris.
Um dia o fulgor de um Van Gogh.


13 comentários:

M. disse...

Belíssimo!

Justine disse...

Envolvente, diria encantatório, o teu texto.
E que posso dizer da soberba beleza felina, olhando orgulhosamente o mundo ?

Rocha de Sousa disse...

Quando acabei o livro «Angola 61»,
eu estava na amurada, não como em Alcântara, mas como a chegada a Luanda em 61 passada ao contrário.
Em vez de emergir, a cidade afun- dou-se. Ficou o horizonte do mar. E
eu dissse mara mim mesmo: «Angola não existe»
Aquela não, sem dúvida, é como os quados às escuras, de noite, nos museus,que Sartre dizia deixarem de
existir, assim.
Mas a ressurreição em certas manhãs
trazem muita coisa de volta, e re-
leio as suas palavras, Jawaa, um voo picado de norte a sul, de leste a oeste, olho vivo sobre as principais nomeações, e tudo tor-na dizer-se, em volta.
A ferida do seu coração é como certas flores naturais.
Rocha de Sousa

dona tela disse...

Aqui há gato!

Beijinhos.

Manuel Veiga disse...

admirável as cores com que teces o teu texto

beijos

Anónimo disse...

Parte desta madrugada foi de pouco sono, e, resolvi preencher a minha vigília com algumas leituras dos textos do 6º jogo do Eremitério (onde também tenho um com o nº "X"),li o texto da autora deste blog, gostei, e fui ver o blog, e, continuo a gostar. Vou passar por aqui mais vezes, sem dúvida, e, vou deixar um link no meu.
Um Abraço.
Jorge

pianistaboxeador21 disse...

Desculpe a demora em aparecer, mas assim que pude, vim aqui e li o texto. E só tenho a dizer que é muito bom. Precisamos ter olhos de ver, e muitas vezes não temos.

Abraço,

Daniel

vida de vidro disse...

As referências fazem parte da nossa essência. E, por vezes, não entendemos, não vemos quais são na verdade as nossas referências.
Belíssimo texto. **

vida de vidro disse...

As referências fazem parte da nossa essência. E, por vezes, não entendemos, não vemos quais são na verdade as nossas referências.
Belíssimo texto. **

Rafael Almeida Teixeira disse...

E tudo isso (referências) são histórias a serem contadas.

Um abraço saudoso.

Lord of Erewhon disse...

Muito haveria a dizer do branco e da brancura que nos recusam, no azul e no verde, no vento e na luz, em nós e nos outros.

Dark kiss.

P. S. Escreveste «Max» em vez de «Marx».

dona tela disse...

Uma semana muito fixe para si.

jawaa disse...

És um lindo, milord, já emendei.
Bem hajas