terça-feira, setembro 30, 2008

Antes do Tempo

 
Então, muito ao longe, uma vermelhidão tenuíssima foi avultando pouco a pouco, derramando-se pelo horizonte e repintando a abóbada imensa dos Céus.
Depois, esse clarão sinistro reverberou na terra: as cimas agudas, dentadas, tortuosas, alvacentas das fragas marinhas tinham-se abatido e nivelado, como os cerros informes de neve amontoada, que, derretidos nos primeiros dias de Estio, vão, despenhando-se, formar um lago chão e morto na caldeira mais funda de vale fechado.
Tudo a meus pés era um plano uniforme, ermo, afogueado, como a atmosfera que pesava em cima dele: e, além, jazia o cadáver do mar.
Eu, o silêncio e a solidão éramos quem estava aí.

Alexandre Herculano


Como por encanto, pousei um destes dias algumas, muitas, décadas atrás, no tempo em que eu ainda não tinha lugar para memórias. Retomo assim o sentido das referências que alicerçam a vida de cada um de nós.

A minha ligação a meu pai construiu-se das memórias dele, homem solitário, de fortes vínculos à terra e à família que deixara para sempre, distantes no espaço, depois no tempo. Na minha infância pausada, os fins de tarde na fazenda, o tempo do Natal, trazia as memórias de sua casa, dos doces de abóbora – os bilharacos –, do vinho deixado na Consoada sobre a mesa para lembrar os que partiram e eu não conheci, dos folares com ovos vermelhos na Páscoa, as histórias repetidas dos primeiros anos de África no início do século.

Os nomes dos familiares ficaram ligados às fotografias, poucas, esmaecidas pelo tempo, mantidas guardadas numa carteira a que só tarde tive acesso. Provas da vida que era quando nasci, agora retomada neste encontro familiar, com fios ligados, os nós que nunca havia desatado.

O caminho é cada vez mais em declive e afloram em mim, em nós, todas as imperfeições, como no fim da estrada alcatroada o caminho ainda afeiçoado, as valetas limpas, as bermas cuidadas, depois o asfalto esburacado, por fim o caminho de terra batida, as pedras saltando, a chuva abrindo leitos.

Porém em horas de solidão, se olhar para trás, a paisagem, as cores do arco-íris, as nuvens plúmbeas também, ainda permanecem.


3 comentários:

Manuel Veiga disse...

ganham outra expressão. os caminhos assim. percorridos em sentido oposto...

belíssimo texto. dolente. entertecido de fios, laços e memórias...

beijos

vida de vidro disse...

Quanto mais o caminho se inclina mais as memórias nos rondam, nessa mescla de beleza e imperfeições. Conseguimos talvez ver melhor. Muito belo. **

M. disse...

O mistério da experiência humana tão bem tratado neste teu belíssimo texto.