domingo, fevereiro 24, 2008

Desejar Poder Querer

Que jaz no abismo sob o mar que se ergue?
Nós, Portugal, o poder ser.
Que inquietação do fundo nos soergue?
O desejar poder querer.
Fernando Pessoa




Quantas vezes a memória me aparece como um sótão cheio de cadinhos! Depois é preciso escolher, cadinho sim, cadinho não. Cadinho sim, cadinho sim. Cadinho não. E por aí adiante.

Nem todas as memórias estão prontas a servir, muitas estão turvas, outras, é preciso temperá-las para poderem ir à mesa; e há aquelas que, como o bom vinho, precisam de tempo para amadurecer, em cascos de carvalho, de preferência. Finalmente há as que, como o vinho verde, não devem ser guardadas muito tempo; borbulham e são deliciosas se servidas frescas. Mas para isso têm de ser de boa casta, de outro modo, são perigosas.

Por isso eu procuro os cadinhos que já maturaram alguns anos. Aí, as memórias estão mais repousadas. Mesmo com assento no fundo, saem límpidas e claras, aquietadas quando sofridas, vazadas devagarinho e no tempo certo.

Mas de quando em vez encontro-me com outras histórias, de memórias de outros que tocam nas minhas e batem no mesmo ritmo, doloroso, magoado, monótono se quiserem, mas naquele bater que nos alimenta a existência, que nos acende os afectos, os brios, o orgulho de se ser português.

E eu li, na revista Notícias Sábado do DN de ontem, retirado de um artigo intitulado «Uma instabilidade conveniente», sobre um fundo em tom verde de esperança (o sublinhado é meu):

«Outra das medidas que a Austrália não perdoou a Alkatiri foi a sua aproximação a Portugal e a adopção do Português como língua oficial. Uma feroz campanha, orquestrada pelos media daquele país, acusou Portugal de estar a impor aos timorenses o seu idioma, com professores pagos principescamente... E enquanto as calúnias circulavam em roda livre – nas televisões, rádios e jornais, chegando mesmo a fazer parte do discurso dos turistas de passagem por Timor – o que fez, por exemplo, a CPLP? Nada. O linguista australiano Geoffrey Hull foi dos poucos que tiveram a coragem de denunciar o ataque ao idioma de Camões no que denominou de “inverdades anglofónicas”. Em resposta a uma série de artigos hostis, Hull recordou, que “quem está familiarizado com a História” sabe que “a língua portuguesa sempre foi preponderante para a identidade nacional do país”. Se ainda houvesse dúvidas sobre as intenções de Camberra, elas dissipar-se-iam ao lermos o que deixaram escrito, numa placa de bronze afixada na fachada do Mercado Municipal de Dili, emblemático exemplar da arquitectura portuguesa, os técnicos australianos que ali efectuaram uma simples operação de restauro: “Este edifício é uma oferta do Governo e do Povo australiano para a celebração do dia da Independência de Timor-Leste em 20 de Maio de 2002.»

Nós somos Portugueses e temos História. Uma História bonita. Não envergonhamos a União europeia, de que somos parte integrante. Para quê tanta modéstia? Tanto receio de parecer mal? Tanta hesitação em reclamar ajuda imediata?

O mundo sabe que não nos move o interesse económico, que a Austrália já se adiantou em duas gerações pelo menos. Mas há um povo que sofre.

No plano dos afectos, Timor também é Portugal.

8 comentários:

Rafael Almeida Teixeira disse...

No meu sonho, você ganhava o prêmio Nobel em literatura.

A língua de Camões é a quinta língua mais falada no mundo.

Rocha de Sousa disse...

Que posso dizer mais sábio e senti-
do do que fez Rafael? Jawaa escreve
com a sensibilidade e a beleza das
tecedeiras de Limões, no Norte. Se-
guimos o desenho, embalados pelo ritmo irrepreensível, e de súbito
os fragmentos da memória a montante
vêm embater, fagorosamente,num «ra-cord» cortante, num redirecionamen-
to a jusante: a denúncia claríssima
e justiceira do papel da Austrália
em Timor e os golpes desferidos ma-
nhosamente sobre uma cultura e uma
língua a que aquele imperial país deveria consagrar, não falsas hon-
ras, mas um frémito mínimo de sen-
sibilidade humanísta.
De facto, os afectos por Timor e em
Timor são o que de melhor identi-
fica Portugal com aquele país. Muito mundo ainda de fraldas (cos-mopolitas)teria que aprender com um país de longa história e empre-endimentos outrora que abarcam o mundo.Não temos,como oportunamen- te escreveu jawaa,de ter vergonha de nada. Com dois milhões de cida- dãos, e na vanguarda da época, deixámos pérolas aqui e além, em muito terra ainda a acordar. Por isso,e hoje, os meninos armados que arrasam patrimónios e fazem en-
colher a natureza das escolhas, vi-
vem das pérolas alheias, enganando
os sobreviventes.
Rocha de Sousa

Rui Caetano disse...

Um texto muito bem escrito. ESte Timor ainda vai trazer imensos problemas para o nosso mundo da democracia.

Isabel disse...

Olá querida Jawaa, tinha saudades de vir aqui.
Segura de ti e do que pensas, como sempre te venho encontrar.
És um exemplo de força, coerência e doçura.


Não temos de ter vergonha de nada... tens toda a razão.

Um beijo enorme para ti.

Isabel

M. disse...

É bom ler-te. Já te disse isto, não disse? :-)

rui disse...

Olá Jawaa

Somos uma enorme Nação, sinto orgulho por fazer parte deste povo, mas nem sempre os governantes estiveram à altura de a conduzir!
Há injustiças dentro e fora do meu País.

Abraço

bettips disse...

Impecável, a dissecação do "temeroso" e pequenino pensar! Não há a coerência política, há a lucidez de uns tantos. Poucos.
Se afectos evidentes não houvera, que a língua nos comunique os corações. Que laços mais belos de criar e preservar, a tantas horas de distância terrena!
Beijinhos

Manuel Veiga disse...

temos história a mais. e pouco presente. dir-se-ia!

excelente.