sexta-feira, janeiro 18, 2008

O Poder da Vida


«Estou contando ao senhor, que carece de um explicado. Pensar mal é fácil, porque esta vida é embrejada. A gente vive, eu acho, é mesmo para se desiludir e desmisturar. A senvergonhice reina, tão leve e leve pertencidamente, que por primeiro não se crê no sincero sem maldade. Está certo, sei. Mas ponho minha fiança: homem muito homem que fui e homem por mulheres! – nunca tive inclinação pra aos vícios desencontrados. Repilo o que, o sem preceito. Então – o senhor me perguntará – o que era aquilo? Ah, lei ladra, o poder da vida.»

João Guimarães Rosa





Em conciliábulos com a razão da escrita, desta vez mais concretamente quanto à manutenção de um blogue, não me parece excessivo voltar ao tema. Já por mais de uma vez me referi ao que poderá estar bem no fundo de cada um de nós ao sermos tentados a passar à escrita – para um público que nos é, e para quem somos, totalmente desconhecidos – algo do que temos de mais íntimo, as nossas memórias mais cruas, as mais doces, quiçá as mais dolorosas e magoadas; aquele desabafo que às vezes ecoa em nós de modo insistente, ou tão só a expressão de um contentamento ou uma revolta momentâneos.

Escudados por anonimato a maior parte das vezes, um anonimato que se vai esbatendo à medida que se criam os laços de que falava Saint Exupéry – a domesticação do próprio perante os outros viajantes do espaço – emergem personalidades nem sempre visíveis no quotidiano apressado que nos distorce o corpo e o espírito que transparece. Por defesa, é claro.

É também um descobrimento de nós próprios em plena liberdade, deixando assomar o que guardámos fundo, o que nos afoga, sem peias, sem constrangimentos, sem receio de ironias, também sem ferir aqueles que já sabemos que não aceitam esta parte de nós, esta forma de ser que é parte integrante do que somos, aquilo que foi borbulhando e alterou no tempo o sorriso e o gesto.

Há porém um aparente contra-senso nesta forma de liberdade que referi antes, porque os laços que se estabelecem são afinal tão fortes na sua delicadeza – hoje vou tomar chá ao PPP – que nem queremos imaginar que possam deixar de estar presentes no nosso mundo já não só virtual. E sentimo-nos de liberdade desprovidos, presos de afectos, de alguma forma obrigados a manter o contacto porque fazemos falta. Na mesa do chá. No túnel da vida.

Bom sentir isso na solidão dos passos.



8 comentários:

M. disse...

Muito bem escrito. Como sempre.

bettips disse...

Ali há uma, duas...várias companhias, já muito efectivas e afectivas. Por viagens, por gostos, até por comentários.
E fazem falta, os ténues laços...
Gosto do teu escrever pensando. Muito!
Bjinhos

Sant'Ana disse...

Uma vez disseste-me que te encontravas nas minhas palavras e nunca de forma tão simples e verdadeira eu senti que o caminho inverso era o meu até às tuas linhas. Que as palavras vestem nunca duvidei mas que tão perfeitas sob medida, foi um encanto descobrir. E quando tudo parece simplificar-se, afinal adensa-se o mistério, tenta "ver-se" para o outro lado dos fios, de um vidro inerte. E encontra-se, eu encontrei-te.

Um beijo.

Ps.: Nice tea for all of you.

Manuel Veiga disse...

"os bons espíritos, encontram-se sempre!..."

que belo "espectáculo" duas mulheres inteligentes e sensíveis a tricotar conversas atrasadas... rsss

Rafael Almeida Teixeira disse...

A escrita para mim não é uma libertação da emoção, mas uma fuga da emoção; não é a expressão da personalidade, mas a fuga da personalidade.

Jawaa gostei muito da imagem que você escolheu para sintetizar suas palavras.

Abraços afetuosos.

Kalinka disse...

Que bela é a tua escrita!!!
Prende-me à sua leitura, deixando-me sensível e deliciada.

Por aqui já anoiteceu...e, rapidamente termina o fim de semana, como sempre...a voar!!!

Vim sorrateiramente convidar para espreitar o meu kalinka, acabei de responder a um desafio sobre cinema e...há muito a dizer, deixo apenas um pequeno apontamento:
SOBRE O FILME: O PIANO
Toca-me como se a minha pele fossem as teclas do piano.
Toca-me numa melodia única.
Toca o meu sexo com os tons de maresia e os meus seios com os tons de jazz.
Toca as minhas coxas entreabertas em portas de sedução
Toca os meus lábios em acordes de paixão.
ADOREI ESTE FILME.

Rocha de Sousa disse...

A maior parte das pessoas que já visitou este novo e belíssimo texto,deslizando pelo deslizar dele, teve a clara necessidade, senão urgência, em reconhecer-lhe publicamente a qualidade e o modo especial como a autora «pensa escrevendo».
A escrita depositada no blog é, para quem gosta de o fazer e de se
relacionar com reflexos ao espelho,
com retornos de convencimento e gratidão, um exercício espiritual
(e também técnico, porque não?)de grande valia. Tenho meditado sobre
o assunto. E apesar das minhas relutâncias perante os lados per-
versos do crescimento dos meios ou de tudo, sinto hoje que basta en-
contrar um bom interlocutor (nas ideias e no fazer) para se ganhar
aqui um «rosto» amigo e um impulso
de aprendizagem em «diálogo». O seu
contributo nesta área tem a «visi-
bilidade» possível e as visitas sem
rosto de muita gente. Mas isso acontece-nos quando escrevemos livros e os melhores leitores talvez não sejam os da comunicação social nem mesmo os críticos. A substância da sua rflexão atra- vessa, como algumas vezes lhe tem acontecido desde que a conheço, áreas de bruma, abrandamentos, depois quase euforias, embora sempre centrada sobre a verdade da experiência pessoal e dos sonhos em volta.
Não lhe aponto outra vez um cami-
nho em livro, apesar de achar que
esse projecto lhe assenta como uma luva, mas envio-lhe a minha concor-
dância (hoje primaveril) com o que nos ofereceu para ler e pensar.
Rocha de Sousa

rui disse...

Olá Jawaa

Sinto-me bem comigo e com a tua escrita, onde as frases emergem insufladas do teu pensar e, edifícadas por palavras sentidas.
Gostei.


Abraço