« – Era assim a floresta? – perguntavam com um arrepio breve e muita admiração as pessoas que visitavam o atelier do pintor. Ele abria os braços, punha-se a rir. Como havia de saber?
Há séculos que os desertos e as grandes florestas e os densos bosques pintalgados de sol tinham desaparecido da face de um pequeno mundo superpovoado, porque a terra era pouca para edificar e para cultivar. Por isso se cultivavam também os oceanos.
Nas antigas florestas da Amazónia havia deslumbrantes cidades de vidro, aeroportos imensos, belas auto-estradas. O mesmo nas de África e da Ásia, mesmo nas do resto do mundo. E os animais, os poucos que tinham sobrevivido ao arrancar das raízes, encontravam-se em três ou quatro jardins de aclimatação.»
Mª Judite de Carvalho (in Os Idólatras)
Era o tempo do milho. Grãos amarelinhos, macios ao tacto, aquecidos, deslizantes. Creio vir daí o meu gosto pelos tons quentes do dourado ao castanho. Nos anos de abundância, o movimento era de tal ordem que não havia tempo de guardar o milho que chegava às arrobas em quindas enormes trazidas à cabeça das mulheres ou em grandes sacas sobre um grosso tronco de árvore bifurcado que dois bois arrastavam penosamente.
Eram então colocadas tábuas de denga (madeira não espontânea, de cor clara, de que era feita a mobília do meu quarto) a barrar a porta de entrada do armazém até meia altura e o milho era despejado directamente para o chão batido. Lá para Junho, Julho, já o milho aparecia por entre as tábuas mais altas, e eu aguardava ansiosa o fim de tarde para ir subir o monte de grãos com a euforia que nos deixava o corpo e cabelo cobertos de escamas. Às vezes um sapato perdia-se pelo meio e servia de pretexto para mais um quarto de hora de brincadeira.
Mas o que eu mais gostava era de acordar de manhã ao som da cantilena dos serventes na faina do tratamento do cereal. Era sinal de vida, de alegria, não eram aqueles dias monótonos e sempre iguais.
Era um trabalho de equipa. A duna de milho descia da porta de comunicação entre a loja e o armazém, que tinha o tapume de madeira, até à grande porta dos fundos do armazém que dava para norte. Aí era colocada a tarara, que iniciava o seu trabalho de manhãzinha e só descansava pelas quatro ou cinco da tarde.
A faina consistia em encher sacos com o milho amontoado, sacos esses que dois transportadores levantavam, segurando um de cada lado, com uma mão em cada ponta de baixo, e que deixavam tombar a parte superior sobre os outros dois braços livres entrelaçados, fazendo uma espécie de cadeirinha para aquele peso de cerca de cem quilos. Iniciava-se então aquele soar... hing- hang ... hing-hang... hing-hang... que se prolongava por todo o dia. Uns levavam os sacos para a tarara, outros carregavam-nos com o milho já tareado para a balança e depois para o fundo do armazém onde eram alinhados e cosidos com fio de sisal enfiado numas agulhas enormes de cerca de um palmo, escuras e achatadas na ponta em que se enfiava o barbante.
Muitas vezes, quando me levantava, pelas sete horas, já lá estava uma camioneta a carregar os sacos prontos de véspera. Esporadicamente, deixavam-me ir ver carregar, o que eu considerava um acontecimento.
Há séculos que os desertos e as grandes florestas e os densos bosques pintalgados de sol tinham desaparecido da face de um pequeno mundo superpovoado, porque a terra era pouca para edificar e para cultivar. Por isso se cultivavam também os oceanos.
Nas antigas florestas da Amazónia havia deslumbrantes cidades de vidro, aeroportos imensos, belas auto-estradas. O mesmo nas de África e da Ásia, mesmo nas do resto do mundo. E os animais, os poucos que tinham sobrevivido ao arrancar das raízes, encontravam-se em três ou quatro jardins de aclimatação.»
Mª Judite de Carvalho (in Os Idólatras)
Era o tempo do milho. Grãos amarelinhos, macios ao tacto, aquecidos, deslizantes. Creio vir daí o meu gosto pelos tons quentes do dourado ao castanho. Nos anos de abundância, o movimento era de tal ordem que não havia tempo de guardar o milho que chegava às arrobas em quindas enormes trazidas à cabeça das mulheres ou em grandes sacas sobre um grosso tronco de árvore bifurcado que dois bois arrastavam penosamente.
Eram então colocadas tábuas de denga (madeira não espontânea, de cor clara, de que era feita a mobília do meu quarto) a barrar a porta de entrada do armazém até meia altura e o milho era despejado directamente para o chão batido. Lá para Junho, Julho, já o milho aparecia por entre as tábuas mais altas, e eu aguardava ansiosa o fim de tarde para ir subir o monte de grãos com a euforia que nos deixava o corpo e cabelo cobertos de escamas. Às vezes um sapato perdia-se pelo meio e servia de pretexto para mais um quarto de hora de brincadeira.
Mas o que eu mais gostava era de acordar de manhã ao som da cantilena dos serventes na faina do tratamento do cereal. Era sinal de vida, de alegria, não eram aqueles dias monótonos e sempre iguais.
Era um trabalho de equipa. A duna de milho descia da porta de comunicação entre a loja e o armazém, que tinha o tapume de madeira, até à grande porta dos fundos do armazém que dava para norte. Aí era colocada a tarara, que iniciava o seu trabalho de manhãzinha e só descansava pelas quatro ou cinco da tarde.
A faina consistia em encher sacos com o milho amontoado, sacos esses que dois transportadores levantavam, segurando um de cada lado, com uma mão em cada ponta de baixo, e que deixavam tombar a parte superior sobre os outros dois braços livres entrelaçados, fazendo uma espécie de cadeirinha para aquele peso de cerca de cem quilos. Iniciava-se então aquele soar... hing- hang ... hing-hang... hing-hang... que se prolongava por todo o dia. Uns levavam os sacos para a tarara, outros carregavam-nos com o milho já tareado para a balança e depois para o fundo do armazém onde eram alinhados e cosidos com fio de sisal enfiado numas agulhas enormes de cerca de um palmo, escuras e achatadas na ponta em que se enfiava o barbante.
Muitas vezes, quando me levantava, pelas sete horas, já lá estava uma camioneta a carregar os sacos prontos de véspera. Esporadicamente, deixavam-me ir ver carregar, o que eu considerava um acontecimento.
2 comentários:
Isso é que é paciência TT, todos os dias me bate à porta. Beijinhos e grata sempre por isso.
Então Planalto, já desceu à planície para o trabalho? Hoje vou aí tomar café e levo minha cara-metade; apareça tbém, ok? Quanto à fazenda...Naquela em que meu pai reergueu a vida quando desfez a sociedade com os irmãos - quando eu nasci - e onde moram todas as minhas recordações mais lindas: Férias e férias, fins de semana, com família e amigos, (sem colégio) caça, queimadas,passeios, água: nascente, vala, lagoa, rio, pesca e liberdade de trocar o almoço por fruta... Para além do Kussava, a caminho do Bailundo.
Hoje, numa tarde nostálgica, resolvi percorrer quase todo o teu blog e ao ler esta postagem, deparei com o que escreves-te.
O mundo deu tantas voltas desde esse tempo que falas que só agora me veio à memória esses dias vividos, em que assisti várias vezes à taragem (se é assim que se diz), do milho no armazém da casa dos teus pais e não é que senti aquele cheiro que emanava da tarara e ficava-mos tão sujos que tínhamos que ir tomar banho. Aquele barulho que a tarara fazia nunca mais esquece. Que boas férias passei lá e que momentos aqueles!!!!!!!
Enviar um comentário