Havia a um canto da sala um álbum de fotografias intoleráveis,
Alto de muitos metros e velho de infinitos minutos,
Em que todos se debruçavam
Na alegria de zombar dos mortos de sobrecasaca.
Um verme principiou a roer as sobrecasacas indiferentes
E roeu as páginas, as dedicatórias e mesmo a poeira dos retratos.
Só não roeu o imortal soluço de vida que rebentava
Que rebentava daquelas páginas.
Carlos Drummond de Andrade
Rendo-me completamente às palavras de António Lobo Antunes.
Cada vez mais ele perde o pudor de dizer que ama e isso é de uma beleza sem limites.
Dá a volta e enrola e diz e repete e reitera o que eu já antes tinha lido sobre a sua ligação ao irmão que se lhe seguiu. Aquele irmão que continuou a exercer a medicina com dedicação, com dignidade, com proficiência, aquele irmão que também é escritor, que também tem uns olhos azuis que afagam só de nos olhar, aquele irmão só seu que ninguém mais tem. Nem os outros irmãos. Este é só dele, António. Deve ser aquela outra parte de si que ele não foi capaz de cumprir porque, além de digno, era também nobre e solidário e não foi capaz de lidar com o tormento que sentia na carne quando procurava sanear o sofrimento dos outros.
Foi essa dor que moldou a mão deste grande escritor, um sofrimento calado na infância, revoltado na adolescência e gritado a um tempo em renúncia e entrega, vertidas ambas na profundidade e beleza de sua escrita. Foi a certeza da estima dos que o lêem e admiram que lhe deram força para vencer a doença que o minava, foi a estima dos que o ajudaram a debelar a doença que lhe deu força para verter os seus sentimentos sem rebuço, justificando os humores, confessando as dores, dizendo os amores.
Uma das crónicas mais tocantes que li deste autor reportava-se à morte de seu pai. Palavras doridas, doloridas, dolorosas, palavras de espanto por sentir o peso de ocupar agora o lugar que fora de seu pai à mesa. Palavras de infinita solidão. De franqueza: «amava-o?» De saudade, já.
«Não pense que me esqueço. Não esqueço. Paizinho».
9 comentários:
Minha amiga, este seu texto é de uma qualidade inqualificável, não
apenas pela forma como se desenrola
e torna a dor difícil um cântico de
esperanças, mas também porque sabe
amado e visível esse grande escri-
tor, Lobo Antunes, entidade da nos-
sa possível grandeza. E que, para além da obra literária de assombro
publicada até agora, se exprime de
facto, a par, nessas crónicas «do-
ridas, doloridas, dolorosas», agora
pelo pai, outrora por uma mulher solitária que morria entre papeís,
chá e pão duro. É lindo, lindo, es-
te seu texto de justiça e justo,de
respeito e louvor a um grande tra-
balhador da nossa belíssima língua.
Rocha de Sousa
Olá....
Venho agradecer as suas palavras de incentivo ao lançamento do meu primeiro livro... E vejo que participou na elaboração do que em breve será lançado... espero poder estar presente nesse lançamento :)
Mais uma vez agradeço visita e prometo aqui voltar :)
Obrigada :)
Beijinho
Até já!**
também gosto do António Lobo Antunes. nas suas crónicas de pessoas simples. que ressumam humanidade. e tão desamparadas...
beijo
Comoventes e sentidas, as tuas palavras. Digníssima declaração de respeito e ternura.
Quando se despe, sim, e lhe vemos a carne e os amores. Mesmo que seja falando de outros, o que faz com tanta ternura irónica. Sentidas as palavras que (te)tocam.
(bem sei que o teu rio existe só para ti, que o pintas em pequenas palavras de infância...bem sei!)
Bjinho
vem conhecer-(me)...
Também sou fã das crónicas de António Lobo Antunes. E o teu texto é um dos muitos belíssimos que escreves.
Amoroso, amoroso é o post que acabei de fazer.
Muitos cumprimentos.
Falhei muito poucos livros de Lobo Antunes. E sou leitora assídua das crónicas em que ele se (ex)põe muito mais a nu. Com esse impudor de dizer que ama. Belíssimo post.
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