terça-feira, setembro 16, 2008

Contexto


Estás profundamente na pedra e a pedra em mim, ó urna

salina, imagem fechada em sua força e pungência.

E o que se perde de ti, como espírito de música estiolado

em torno das violas, a morte que não beijo,

a erva incendiada que se derramana íntima noite

- e o que se perde de ti, minha voz o renova

num estilo de prata viva.

Herberto Helder




Quantas vezes brota em mim a sensação de ser tão só uma parte humilde da natureza!
A chegada do Outono ou da Primavera mexe comigo de todas as formas. Controversas, estranhas, não pensadas, não lidas, sentidas. O Verão ou o Inverno situam-se apenas no gosto, não gosto. Mas o Outono chega e as madrugadas quietas incomodam-me pelo silêncio que escuto quando passa um carro, depois outro, na estrada perto. Apaga-se por momentos o ruído ao longe e a quietude permanece. Olho para trás no tempo e não me recordo de terem sumido completamente os pardais pelas redondezas. Pela tardinha, ontem, o pisco fez-me vénias no telheiro vizinho, quem sabe agradecendo os grãos de arroz que permanecem no muro, as migalhas trincadas da comida do cachorro.
Apeteço-me a lareira a quebrar as solidões, faz falta um gato, dois gatos, enrolados juntos no cesto das lãs. Recorro aos fios, às linhas, aos linhos, mas a vontade foi-se com os pardais. Até rareiam os corvos na estrada em seu labor competente na recolha de animais atropelados, abandonados, assustados. Entristeço, definho com os dias, em cada dia. Pergunto-me se devo morrer num cinzento outonal como meu pai, como meu irmão, como é natural fenecer a natureza inteira. Ou se, como minha mãe, devo deixar a vida quando ela renasce, resplandece de força – por que morreste na Primavera, Mãe? – Quando os dias acendem mais cedo e antes da luz os ninhos abrem em chilreios e o galo canta, o cão ladra, ao longe?
Decididamente vou escolher o Outono tranquilo e sereno, como deve ser a morte, com as lágrimas da chuva a preencherem as saudades que deixo em cada pulsar de vida. A chuva a levar as cinzas. A atravessar com elas o oceano até ao lago gelado dum continente, depois voltar e descer a outro, subir finalmente o meu rio e repousar naquele diamante que permanece à minha espera.


9 comentários:

Justine disse...

Um pouco perturbante, um pouco melancólico,talvez libertador, o teu texto.Sem dúvida, muito belo.
Pudéssemos mós escolher o tempo de morrer, também eu escolheria um destes dias dolentes e delicados de outono...

Rocha de Sousa disse...

Isto ainda vem com a brisa de amor
que Lobo Antunes tão comovidamente
enviou ao pai. Morto, irrecuperável
como as primaveras de outrora, e no
entanto renascido, outonal, na voz
do filho, saindo transitoriamente do seu tumulto literário.Jawaa via-ja na crista de uma onda baixa,mur-
murante, interrogando-se, com a natureza, as flores e os pássaros,
de que foi feita a dor terminal do
pai, como sorriu a alma da mãe ao
desprender-se dos acasos quotidia-
nos. Escolhe «esta» viagem, a hora
e a luz, com brandura.É o seu lado terno oferecido aos seres e às me-
mórias, numa convicção libertadora.
O meu aceno para Justine. A minha
grata surpresa por lê-la assim.
Até breve
Rocha de Sousa

M. disse...

Tão bonito, Jawaa!

pianistaboxeador21 disse...

Muito sensível e muito delicado. Mas não tenho tido essa tristeza "calma" ultimamente, só as tempestades.

Abraços,


Daniel

Rui Caetano disse...

Um texto profundo e desencadeador de reflexões várias.

rogério disse...

é interessante como uma data de escritores têm um poema semelhante a este...

Licínia Quitério disse...

Belíssimas palavras por aqui! As do Herberto, claro. E as tuas, numa serena inquietação.
Um beijo.

Manuel Veiga disse...

de uma lucidez arrepiante. como quem (bem) domina a escrita e ... o sentido da vida.

gosto desse "perfume" pagão. de uma verdadeira "patrícia" romana.

beijo

naturalissima disse...

Belo!
Agrada-me sempre lê-la deste jeito.
Gosto da forma como lida com a vida, com os sentimentos... com a morte.

:)