Às
vezes, à noite, na sala, a minha mãe tocava harpa. Lembro-me dos dedos que
pareciam dizer adeus às cordas e apetecia-me estar nua, encostada ao seu peito,
de olhos fechados, a sentir aquelas mãos no meu dorso, com o som leve, frágil e
triste da minha pele e dos meus ossos a evaporar-se de candeeiro em candeeiro e
a morrer, por fim, na sombra das cortinas, como as borboletas nas pregas de
damasco e nos ramos negros, muito quietos, da figueira. O meu pai lia o jornal
ou tirava o relógio do colete para olhar as horas, um relógio redondo, de
prata, com uma tampa que se fechava sobre os ponteiros, ocultando o tempo, do
mesmo modo que as pálpebras das ostras se cerram sobre a secreta intimidade do
seu mistério.
António Lobo
Antunes in "O Auto dos Danados"
Ontem um
dia diferente na cronologia familiar, a chuva o vento guiando o voo das
cegonhas na tarefa eterna dos enganos com que se enfeita a infância. Nem sei se
por muito mais tempo e nem sei também se não regressar aos lugares primitivos
em que as mulheres pariam os filhos em casa ou na lagoa perto, presentes as
crianças mais velhas, as mais velhas mulheres na ajuda imprescindível. Ontem, as
fadas os duendes os anjos voltejaram e trouxeram a Pilar. O Natal deste ano vai
chegar com mais alegria ao lagar antigo, vamos ter um Menino Jesus que por
sinal é uma menina, mas o que importa é o sentido da vida que corre e não se
detém nas lamúrias dos velhos, as dores o cansaço os by-pass as atrozes os
sinais as sombras a crescerem no corpo nas mãos. E os olhos a perderem o
brilho, o tamanho.
E amanhã será dia de eleições e o país vai ficar na mesma, cada vez mais na mesma, as autarquias a não levarem a carta a Garcia, simplesmente porque nunca a leram. Os autarcas não escutam os munícipes, não vêem as reais carências do município que gerem, não organizam os seus mandatos em função das prioridades, mas das eleições; as juntas de freguesia apenas gerem os seus interesses pessoais, não mostram capacidade de dinamizar os seus espaços, as suas gentes. Não conseguem ter o papel importantíssimo de averiguar das necessidades económicas de uns e outros para que as ajudas materiais cheguem a quem precisa e não seja desbaratada pelos mais espertos.
Muito poucos, demasiadamente poucos, são os que verdadeiramente se dedicam de alma e coração à sua terra, com a intenção de gerir as suas potencialidades, com o intuito de servir aos outros e ao país. A autarquia onde voto mostra-me um Centro de Saúde desprezado por dentro e por fora, onde qualquer um se sente doente só por circular ao seu redor num jardim ao abandono, ou sentar-se numa cadeira no interior ou apenas rodar uma porta. Incúria total, não falta de meios, porque há verbas para belos pavimentos e mesas de pedra com lugares para estacionamento (- para piqueniques à beira da estrada? - para os peregrinos? ) a uma escassa dezena de metros, para um e outro lado, onde as prostitutas continuam a sentar-se diariamente à espera de quem passa.
Por fim, a despesa brutal, inconveniente, irresponsável, com as campanhas para as eleições autárquicas simplesmente me aguça a vontade de não ir votar. Está pois decidido, amanhã, pela primeira vez desde que tenho direito ao voto, pela primeira vez contra tudo aquilo por que sempre lutei, pela primeira vez não vou votar.
É que tenho de ir ver a Pilar.
1 comentário:
não sei, não...rss
mas julgo que te compreendo.
beijo
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