Para um amigo tenho sempre um relógio
esquecido em qualquer fundo de algibeira.
Mas esse relógio não marca o tempo inútil.
São restos de tabaco e de ternura rápida.
É um arco-íris de sombra, quente e trémulo.
É um copo de vinho com o meu sangue e o sol.
António Ramos Rosa
Vejo-me sentada num horizonte cada vez mais
longe. Olho para trás e o caminho percorrido tem o tamanho do mundo, aquele
mundo que quero passado e não desejo ver de novo, aquele mundo em que nem por
um segundo lastimo ter participado. Apenas, repito, não queria de novo
palmilhar, nem os bons nem os maus momentos.
O que foi positivo, ficou enraizado e agora
tem o sabor da mandioca, aquela raiz que é alimento, nem é preciso ir ao forno
porque em cru é mais suculenta, como a batata doce, como o milho verde e
leitoso. O que doeu e deixou marcas é para cobrir com tecido leve, para
encobrir a cicatriz, mas lembrar que aconteceu. Esquecer é não ter alma.
O corpo cresce e toma novas formas porque é
de sua natureza, por dentro pouco difere para além do cansaço que força a
escolhas mais profícuas, assim rendibilizando o que outrora escoava ao querer
abarcar o mundo. Agora é tudo mais quieto. O olhar o mesmo, apenas um outro
modo de olhar.
Porque olhar é um prazer de deuses. E os
deuses somos nós. Pode-se olhar e não ver, pode-se olhar e apenas sentir.
Pode-se olhar para o que não existe materialmente, pode-se olhar para o que
nada é para além das ligações que o cérebro tece e realiza em imagens como a
«menina dos fósforos» transida de frio e de fome.
Pode-se olhar o que nos cerca e ver as
carcaças disputadas pelas asas abertas dos necrófagos, os pescoços pelados
mergulhando por baixo da pele, os felinos já fartos de fauces sangrentas lambendo-se.
E o arco do sol quase fechado deixando que a noite traga ainda as hienas. Pode-se
olhar e ver a manhã surgir numa coloração diferente, os ossos secos lavados pela força
do calor da chuva dos ventos da monção que chega.
Pode-se olhar o poema e ver o poeta que vive e não
está mais.
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