terça-feira, setembro 24, 2013

A FORÇA DE OLHAR


Para um amigo tenho sempre um relógio
esquecido em qualquer fundo de algibeira.
Mas esse relógio não marca o tempo inútil.
São restos de tabaco e de ternura rápida.
É um arco-íris de sombra, quente e trémulo.
É um copo de vinho com o meu sangue e o sol.



António Ramos Rosa





Vejo-me sentada num horizonte cada vez mais longe. Olho para trás e o caminho percorrido tem o tamanho do mundo, aquele mundo que quero passado e não desejo ver de novo, aquele mundo em que nem por um segundo lastimo ter participado. Apenas, repito, não queria de novo palmilhar, nem os bons nem os maus momentos.

O que foi positivo, ficou enraizado e agora tem o sabor da mandioca, aquela raiz que é alimento, nem é preciso ir ao forno porque em cru é mais suculenta, como a batata doce, como o milho verde e leitoso. O que doeu e deixou marcas é para cobrir com tecido leve, para encobrir a cicatriz, mas lembrar que aconteceu. Esquecer é não ter alma.

O corpo cresce e toma novas formas porque é de sua natureza, por dentro pouco difere para além do cansaço que força a escolhas mais profícuas, assim rendibilizando o que outrora escoava ao querer abarcar o mundo. Agora é tudo mais quieto. O olhar o mesmo, apenas um outro modo de olhar.

Porque olhar é um prazer de deuses. E os deuses somos nós. Pode-se olhar e não ver, pode-se olhar e apenas sentir. Pode-se olhar para o que não existe materialmente, pode-se olhar para o que nada é para além das ligações que o cérebro tece e realiza em imagens como a «menina dos fósforos» transida de frio e de fome.

Pode-se olhar o que nos cerca e ver as carcaças disputadas pelas asas abertas dos necrófagos, os pescoços pelados mergulhando por baixo da pele, os felinos já fartos de fauces sangrentas lambendo-se. E o arco do sol quase fechado deixando que a noite traga ainda as hienas. Pode-se olhar e ver a manhã surgir numa coloração diferente, os ossos secos lavados pela força do calor da chuva dos ventos da monção que chega. 

Pode-se olhar o poema e ver o poeta que vive e não está mais.

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