domingo, abril 29, 2012

O OUTRO LADO


Dans ma cervelle se promène,
Ainsi qu'en son appartement,
Un beau chat, fort, doux et charmant.
Quand il miaule on l'entend à peine,
Tant son timbre est tendre et discret;
Mais que sa voix s'apaise ou gronde,
Elle est toujours riche et profonde.
C'est là son charme et son secret.
Baudelaire



Dotado consideravelmente pela mãe natureza, é um belo exemplar de macho europeu, olhar felino e atrevido, controlando o território dele e o dos outros sem um mínimo de noção de liberdade democrática, com respeito pela dos outros.

Então surge pelas manhãs, sem identificação de estado civil pois não apresenta sinais de aliança com algum ser humano, uma coleira vermelha por exemplo, que ficaria a matar na sobrecasaca cinzento-escuro que enfeita um corpo esbelto e bem nutrido e não explica minimamente o apetite voraz pela mesa do alheio.

Despudoradamente invade a casa se há portas abertas – por norma há, da cave; da cozinha fartas vezes – descendo, subindo escadas se houver silêncio nos afazeres domésticos, invadindo, tentando alargar território. Insiste sempre, apesar das corridas a que é sujeito inúmeras vezes. Corre para o jardim, esgueira-se pela horta ao fundo, trepa o muro e olha, volta-se ainda, atrevido.

Tem uma altíssima auto-estima. Vive bem e quer viver melhor, que lhe importa que os outros passem fome, sejam menos lestos na passada, apanhem com chuva e granizo, sofram o frio da neve, não tenham agasalho à altura. Ele é que tem de manter elevada a sua auto-estima. Não lhe conheço as origens, se assim o educaram ou se ele próprio se educou, felinamente, desenvolvendo as tendências naturais de poder inerentes a ser dotados de inteligência, com um sentido de sobrevivência requintado.

Do outro lado um outro ser idêntico, bravo e inteligente, mas frágil ainda pela idade e condição, eventualmente a tentar defender um território que já assume como seu. Atreveu-se a enfrentá-lo e o resultado ficou à vista: uma unhada no nariz, um braço partido, o corpo todo moído.

O digno Cid (El Cid, el Campeador) vai ser internado hoje no Hospital Veterinário para amanhã de manhã lhe recomporem a patinha que traz levantada e tanta falta faz para as suas necessidades de higiene que insiste em repetir. Tudo vai correr bem, o Mio Cid vai voltar a adoçar os meus dias com a sua alegria esfuziante.

2 comentários:

Manuel Veiga disse...

soberbos os gatos - em sua verdade!

beijos

Anónimo disse...

Eu gosto de ouvir falar de bichos
como de pessoas.Certos bichos, so-
bretudo gatos, cães e canários.
Mas este gato deixa-me inveja: que
naturalidade, que bondade em volta,
tem território sem grandes restri-
ções e tartamlhe carinhosamente da
pata «porque lhe faz falta». De verdade que acho bonito e eu at+e gostava de ter a autoestima dele.
Rocha de Sousa