domingo, maio 22, 2011

O Melro


       E quando a noite se aproximou, disposta a selar com negrura aquela tristeza humana, foi preciso que Farrusco, novamente solidário com os direitos da moça, saltasse da espessura da sebe para o cimo de um estacão, e fizesse ressoar pelo céu parado e quente uma segunda gargalhada. Discordância de tal maneira fresca, sadia, prometedora, que a rapariga ganhou ânimo. Pôs os olhos em si, na força criadora das margaridas abonadas, no ar de coisa sã que toda ela ressumava, e sorriu. Depois, confiante, juntou a sua alegria à alegria do melro. Soltou então também uma risada cristalina, que partiu da verdura do milhão, passou pelas penas luzidias do Farrusco, e foi bater como um castigo no ouvido desafinado do cuco. Um segundo a natureza esteve suspensa daquela gargalhada. A vida homenageava a vida. Depois continuou tudo a cantar.
       – O estafermo do cuco, tia Isaura! Até um melro de riu!

Miguel Torga in «Os Bichos»





Deixo que os olhos se alonguem pela mancha verde que diviso no outeiro longe, pinheiros, eucaliptos talvez, a apetecer a frescura que falta neste ar que não bule. Ontem o mar chamou por mim, mas faltou-me a coragem para o seu abraço, já se foram os verdes anos e calor de então para lhe aceitar a frescura.

Mais perto, os fios dispersos sobre os telhados das casas desordenadas, desordenados eles, feios, grossos, suspensos em postes antigos, inclinados, com garras torcidas, que não impedem a cobiça dos que descobrem o valor do cobre e os cortam pela noite, indiferentes aos estragos causados de quem depende deles. A crise alimenta os vilões, a fome justifica tudo. A falta dela também, entre os homens, que se entregam a desvarios de toda a ordem.

Por isso eu gosto dos bichos que são menos maus, brigam pelo sustento e pela continuação da espécie e depois cantam, cantam que é bom viver, diz a novela da noite, das lendas e maldições dos Índios. Num atropelo ao Torga, eu não ouço gargalhadas do melro, depois de ter ouvido as dos sacanjuères, que ele não conheceu decerto. Ouço-lhe, sim, os assobios de escalas diversas com que me brinda, dia adiante, pousado nos fios, na falta do pinheiro vetusto que os homens abateram, e ontem em desafio com um arrulhar de rola curiosa.

Afinal os fios torcidos de cobre não servem só as comunicações e o apetite dos homens, também servem de palco ao orfeão dos pássaros.

3 comentários:

Rocha de Sousa disse...

A primeira imagem que me ocorreu,
ao olhar para aquela do seu post,
foi de «Os Pássaros», de Hitchcock,
apesar das coisas não se relaciona-
rem. Seja como for, há contactos: a
iodeia do pássaro garrocho, unhas curvas, à espreita, e a sua parti-
lha do fio com os ladrões, agora habituais, que arrancam o cobre dos
cabos, negócio feito. Melhor o can-
to dos pássaros bons: as escolhas na vida são muito assim. E ficam marcas das preferências: às vezes,
como agora, estou a dedilhar no si-
lêncio da tarde e oiço de súbito,
um pouco ao longe, o canto curto do
que parece ser um canário, mas é uma voz fina,que desliza maquinal-
mente: olho para o sítio da gaiola,
agora engalanado com uma escultura minimal. Penso no pássaro. Como ele
aravessou a rua ao nível de um ter-
ceiro andar e desapareceu na obra,
do outro lado.

Justine disse...

Uma observação prosaica ao teu poético texto: acordo com o cantar alegre dos melros, vejo-os a passear sem vergonha pela relva depois da rega,observo-os numa proximidade quase desafiante e gosto deles!Só me zango quando eles me comem as cerejas, e nem uma me deixam:))))))

Manuel Veiga disse...

pois é - os cucos e os tentilhões. são uma praga... rss

beijos