Donde sou? Sou do meu tempo, bem o sei, ou bem o quero saber, porque não é fácil assumirmo-nos com o tempo que nos aconteceu. Mas de vez em quando, a um aceno invisível e perceptível apenas no modo de haver uma perturbação no ar, sinto que sou de outro tempo, de outro destino, de outro signo de ser pessoa. Que outro tempo? Não sei. Não deve ser mesmo tempo nenhum. Deve ser apenas localizável onde não esteja bem e me pergunte donde sou. Donde sou?
Vergílio Ferreira in «Pensar»
Havemos de nos encontrar sozinhas as três para conversarmos um dia inteiro
um dia inteirinho
para nos ouvirmos por dentro nos sessenta em que seguimos de mãos dadas, entre viagens e separações, entre continentes, naquele país que era Portugal e onde não nos sentíamos
nem pequenas, nem discriminadas, nem humilhadas, nem periféricas.
Estamos aqui juntas outra vez, depois dos partos, das cirurgias de peito aberto, dos acidentes vasculares, dos casamentos, dos divórcios, dos netos, depois de perdermos os Mais Velhos, alguns amigos do peito.
Depois de perdermos o chão, no sentido mais lato.
Depois de hoje, três pequeninos budas risonhos de jade hão-de manter-nos unidas para os dias que nos falta cumprir
eles hão-de sorrir para nós em cada lágrima vertida, em cada hora de encantamento, em cada sonho erguido ainda.
Eles não vão deixar-nos perder os laços, as lembranças, a teia construída cedo, os lugares da infância comum, o riso, a alegria
ainda quando afundadas na mágoa da impotência.
É que, como diz Vergílio, não é fácil assumirmo-nos com o tempo que nos aconteceu.
Então, sinto que sou de outro tempo, de outro destino, de outro signo de ser pessoa. Que outro tempo? Não sei. Não deve ser mesmo tempo nenhum. Deve ser apenas localizável onde não esteja bem e me pergunte donde sou. Donde sou?
2 comentários:
Os laços invisíveis que unem vidas, cimentam amizades, dão razão aos dias. Que texto belo, Jawaa!
liames da vida... que o tempo sublima...
beijo
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