Bem sei: a penumbra da chuva é elegante.
Bem sei: o sol oprime, por ser tão ordinário, um elegante.
Bem sei: ser susceptível às mudanças de luz não é elegante.
Mas quem disse ao sol ou aos outros que eu quero ser elegante?
Dêem-me o céu azul e o sol visível.
Névoas, chuvas, escuros – isso tenho eu em mim.
Hoje quero só sossego.
Até amaria o lar, desde que o não tivesse.
Chego a ter sono de vontade de ter sossego.
Não exageremos!
Tenho efectivamente sono, sem explicação.
O dia deu em chuvoso.
Álvaro de Campos
Ando de roda dum livro que, por sua vez, anda à roda de Flaubert.
Gustave Flaubert, o homem que deu vida a Mme Bovary, o homem que divulgou o segredo guardado de todas as Bovary que povoam o lado feminino do planeta porque o outro lado o possibilita ainda, ou, quem sabe, porque nem eles nem elas alguma vez leram Flaubert. Mas não foi sobre esta personagem poderosa que trouxe aqui Flaubert – e digo poderosa, porque Emma Bovary foi tão perfeitamente concebida que viveu para além da sua morte no livro, atormentando o resto da vida do seu criador. Ele escreveu muito mais, mais e melhor, mas ela tomou conta dele, misturou-se com o seu nome, absorveu-o.
Flaubert, ao que leio, tinha uma grande simpatia por papagaios, para além de canídeos e outras espécies de animais, nomeadamente ursos, de que possuía uma pele servindo de tapete em sua casa. Um dia leu uma história de alguém que perdera a sua amada e se tornara misantropo, vivendo os seus dias com um papagaio que repetia o nome da mulher que perdera e com isso se mantinha vivo. Quando o papagaio morreu, o homem perdeu a razão. Começou a imaginar-se ele próprio um papagaio e repetia grasnando o mesmo nome de mulher, enquanto se empoleirava na mobília e batia os braços como asas. A família pretendeu interná-lo num hospício e só o conseguiu construindo uma enorme gaiola, onde ele entrou, fascinado.
Flaubert tece considerações sobre orgulho e vaidade numa carta a Louise Colet, a «sua musa», dizendo que o orgulho é um animal feroz que vive só e vagueia pelas grutas, enquanto a vaidade é um papagaio. Há diferenças, realmente, entre uma palavra e outra, pena é que os papagaios humanos de hoje não se assumam pássaros, para que se pudessem engaiolar como o tal conhecido de Flaubert.
2 comentários:
O prazer imenso de viajar dentro dos livros. De pensar com os livros. De entrar no espírito dos escritores.
Como eu te entendo bem!
Abraço
Aproveita para agradecer os comen-
tários astutos que deixou nos meus
últimos post.
Este seu texto mostra, de facto, a sabedoria com que desfibra o senti-
do das escritas, a pulsação dos li-
vros, começando muito bem por Pes-
soa e viajando pelo qualificado romance de Flaubert, com sentido
pedagógico, apontando a uma meta-
morfose que afinal nos consome, to-
dos os dias cada vez mais. Há os
engaiolados da miséria, da água e do fogo, e há os engaiolados por
eles mesmos, como tantos que, à nossa voltam, repetem sempre a sua
inconsequente aprendizagem.
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