Quando se é jovem, prefere-se os meses vulgares, a plenitude das estações. À medida que se envelhece, começa-se a gostar das épocas intermédias, dos meses que não conseguem decidir-se. Talvez seja uma maneira de admitir que as coisas não podem ter para sempre a mesma certeza.
Julian Barnes, in «O Papagaio de Flaubert»
Onde é que eu já li que o Homem pode fazer de Deus?
Quantas vezes se deseja ter o dom da omnipotência que Lhe atribuem, mas não se escolhe, talvez Ele escolha o momento e nunca coincide com o que nós desejamos. Como é que eu posso ser crente? Recuso completamente esse deus castigador que as três grandes religiões de Abraão nos legaram, embora compreenda a necessidade delas para obviar os excessos dos homens da terra, para melhorar o sentido da vida, para criar a mens sana in corpore sano. Porém o homem usou-as no pior sentido, adulterou os ideais de todas as formas e arvorou-se através delas em senhor do mundo dos outros para proveito próprio.
Não quero, não quero, não quero usar-me na sua pele para meu proveito, mas a verdade é que o sofrimento é um reino em que me debato para não ocupar. E esta ideia de sofrimento colou-se no meu imaginário pela via da religião que eu hoje recuso, porque a minha razão me diz que morrer é só o fim da vida. E é natural entre os bichos matar para saciar a fome, morrer para dar lugar aos outros. Normalmente morrem os menos aptos, os mais fracos, também os que foram grandes e perderam a força.
O companheiro leal das horas dos meus dias mais e menos bons, das noites sem sono, aquele ser minúsculo que preencheu vazios inenarráveis, que adoptou a nossa família como a sua matilha há quase 12 anos, jaz há três dias na sua cesta, agravada a sua insuficiências renal, sem forças para andar, comer, beber, gemer sequer. Os seus olhos vêem mal, continua a ouvir, porém, como as pessoas, no fim, dizem. No Hospital Veterinário, propõem-me fazer de deus, pobre deus misericordioso que não pode prometer-lhe a eternidade, apenas um sono mais longo e sem sofrimento.
Mas, por enquanto, vai reagindo ao soro diário, ainda mostra que quer estar connosco, embora os médicos achem que ele, deixando de comer, está a dizer-nos que não. Depois, não tenho a certeza de conseguir enfrentar essa enorme responsabilidade. Acaso terei sequer esse direito?
5 comentários:
Só o homem pode fazer de Deus, na
relatividade do Universo inteiro,
porque foi ele quem O inventou. De
tanto que quis para si, inventou um
Deus impossível -- e,daí, a sua vi-
da sem sentido, apesar da razão que explica muita coisa e o seu próprio erro.
A compreensão da natureza da vida, um sopro de tempo sem medida, é que nos dá o direito de ajudar a
morrer.Não passe a outros esse di-
reito:quem amou e ama esse ser de
tal forma, é quem pode acabar-lhe
com a agonia, um bocado de «vida»
ainda mais inútil. A sua coragem
pode vir da razão, a falta dela
pode residir na subjectividade do
nosso medo, desde o inconsciente
profundo.
Desejo-lhe força e paz.
Jawaa, o meu grande abraço neste momento de sofrimento. Acabaste de anunciar a morte do Matisse, no Chat Gris. Sei que queres silêncio. Deixo-te com a minha solidariedade e um beijo amigo.
boa questão a tua - seja gato ou homem.
teremos direito?
atrevo-me a dizer que apenas da nossa própria vida!
nada aqui é fútil!
beijos.
O teu sentir tão bem expresso nas tuas palavras. De uma enorme beleza.
Ah...não sabia. Decerto, precisaremos de Deus nas horas aflitas, quando não sobra ninguém. Duma pausa do destino girando à volta.
São decerto horas inenarráveis, estas, as dos nossos amigos. Nunca as superaremos porque o que nos deram foi único.
Calam-se os pássaros e as palavras.
Um abraço muito terno, I.
da sempre (presente) Bettips
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