«Já seria meia-noite, já uma hora seria
Que um vento se levantou. Plim plão.
No meio da areia fria e feita chão de puro fino cetim
Eu vi.
A noite era escura como esta e como o breu, e eu
Pobre soldado mal pronto de meu cabeçal mal dormido, eu vi.
Desguarnecido de amor e sem madrinha, sem carta, sem bolsinha de
Tesouro
Nem parente neste mundo. Faça com quanta força tiver, Sebastião,
Plão, plão, plão.
Que um vento me disse assim. Ó Edmundo.
Edmundiiinho. Eu venho do outro mundo em busca de ti de ti.
Pssst. Pssssst. Disse eu. Já sei. Plão plim. »
Lídia Jorge
Sonhar é bonito. É bom quando se está bem acordado, manhãzinha, ainda no quente dos lençóis, a programar a vida do dia que chega. Sempre que isso acontece tudo parece mais sereno e custa menos levantar, mesmo quando faz muito frio lá fora, quando o jardim hiberna, a geada queima, quando sinto mais saudade dos que já me deixaram.
Não é o caso porque este tempo é mais doce, o calor mesmo excessivo conforta-me porque, reconheço, tenho o aconchego de uma casa fresca, não tenho de andar à lida à torreira do sol. O tempo quente fala-me da vida, está cheio de sons desde a madrugada, chilreios a anunciar a luz que vai abrindo o dia.
Pela manhã, abrir a janela e ler. Sonhar acordada também; pensar no que tenho para fazer quando não há horários para cumprir. Ou continuar o sonho da noite, desembrulhado de mentiras mas nimbado duma fantasia que o não é menos, quando a distância enrola em fumo os desconcertos, os medos, as solidões da lonjura.
O Google Earth deu-me a certeza de que a minha casa da fazenda continua de pé, altaneira no fundo da anhara, à beira-rio. Não sei se alguém lá mora, mas consigo vislumbrar a silhueta dela que se vê na foto, aqui onde o telhado tem a marca da sua renovação após ter sido atingido por um raio. O Kussava também. O rio e a pedra lisa onde se parava a meio da viagem, das viagens sem conta que fiz entre a cidade e o paraíso, a quarenta loooongos quilómetros de distância.
É que as estradas, ao tempo dessas fotos, não conheciam o asfalto. E os nove meses de chuvas torrenciais não se compadeciam sequer das pontes de cimento, quanto mais dos caminhos, onde a lama alta fazia ziguezaguear os carros sem controle, deixando para o cacimbo verdadeiras crateras, obrigando os condutores a nunca ultrapassarem o limite de velocidade dos 30 km/hora.
Cada viagem, uma odisseia. Nunca viajávamos de noite. Quando muito, madrugada alta, antes da alvorada, nas longas viagens para Luanda.
Fascinam-me as novas tecnologias.
Pena não ter nascido com um chip contador de milhas, teria com certeza direito a uma viagem à volta da Terra.
5 comentários:
Sonhar com o passado é bom, mas sem saudosismos exagerados, porque o que passou, passou, tal água que corre por debaixo de uma ponte.
Gostei das fotos.
Uma beijoca e uma semana cheia de coisas boas.
Querida J.,
Podes dizer-me quem são as três meninas da última foto? Será que uma delas é a Laura Guerra?
Gostei muito do teu texto e do poema da Lídia Jorge que escolheste.
Parafraseando Karen Blixen, "I had a farm in Africa" também. Mas foi-se, como tantas outras coisas na vida. As que eu ganhei entretanto também são maravilhosas e... um dia partirão. Já sabíamos que era assim quando viemos a este mundo, e no entanto viemos. Mistérios...
Beijo da Luíza
Tão bonito este teu modo de contares o que te vai na alma.
E eu vou-me embalando nesta "embala" das tuas palavras!
Beijos
Olhar para trás também é uma apreensão de novas sensações, intemporais por já não se encaixarem num nem noutro tempo, mas tão somente no momento..
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