Há dias em que me apetece carpir e dizer como o poeta «o dia em que nasci moura e pereça». Como é que tantos anos volvidos continuo a ser contida, continuo aquela viuvinha-de-rabo comprido que tinha asas mas não conseguia voar alto, porque tinha uma cauda belíssima, com duas ou três vezes o tamanho do corpo, a cauda bonita que lhe tolhia os movimentos. Meu pai dizia para mim em momentos seus de tristeza – e de saudade, quem sabe! – que uma pessoa não deveria nascer de ninguém, deveria ser colocada pela divindade sobre uma pedra, no meio dum rio, de uma anhara deserta, num rochedo à beira mar.
Eu era pequenina e não entendia; hoje compreendo como é forte a marca deixada pelos nossos maiores, como ela se impõe e atravessa connosco a vida. Nem sempre ajuda quando se trata de olhar diferente o mundo que nos ensinaram. Temos de ver com os nossos olhos, afagar com as nossas mãos, aspirar o odor do mundo misturado com o sabor do sal das nossas lágrimas. E risos.
Relendo as suas memórias, vejo-o a contar histórias de «cangonja» recordando sempre com saudade a mãe daquela outra I.
«O transporte era a tipóia a uns 200 km mais para o interior na selva virgem por veredas de pretos. A 27 de Outubro de 1920 surge a ocasião (…)
Se o não estava ainda, devo ter ensandecido então.
Aquele meu irmão delicado de corpo e alma, que não admitia o contacto duma impureza no meio do campo onde nasceu - e a impureza é necessária aos vegetais que nos nutrem, tendo de ser devolvida constantemente... - com um quico na cabeça e com um fato de riscado, uma mulher daquela cor e uma palhota por habitação... Mas era ele, era o meu irmão, a atestá-lo estavam os meus olhos, os meus ouvidos, o meu coração.
Mas eu enganei-me, os meus olhos não viam, como continuam a não ver a vida, e eu continuo a enganar-me sempre.
O exterior não é nada em tudo! Aquela mulher era boa, a casa um mimo e o meu irmão tinha o requinte mais requintado por dentro como abandonado o exterior. A casa era farta, asseada, vivia-se para o paladar sem desprezar o estômago, trabalhava-se gozando, e estes homens curtidos por estes sóis de África eram mais homens, mais humanos, sabiam viver e respeitar-se, respeitando.»
Eu era pequenina e não entendia; hoje compreendo como é forte a marca deixada pelos nossos maiores, como ela se impõe e atravessa connosco a vida. Nem sempre ajuda quando se trata de olhar diferente o mundo que nos ensinaram. Temos de ver com os nossos olhos, afagar com as nossas mãos, aspirar o odor do mundo misturado com o sabor do sal das nossas lágrimas. E risos.
Relendo as suas memórias, vejo-o a contar histórias de «cangonja» recordando sempre com saudade a mãe daquela outra I.
«O transporte era a tipóia a uns 200 km mais para o interior na selva virgem por veredas de pretos. A 27 de Outubro de 1920 surge a ocasião (…)
Se o não estava ainda, devo ter ensandecido então.
Aquele meu irmão delicado de corpo e alma, que não admitia o contacto duma impureza no meio do campo onde nasceu - e a impureza é necessária aos vegetais que nos nutrem, tendo de ser devolvida constantemente... - com um quico na cabeça e com um fato de riscado, uma mulher daquela cor e uma palhota por habitação... Mas era ele, era o meu irmão, a atestá-lo estavam os meus olhos, os meus ouvidos, o meu coração.
Mas eu enganei-me, os meus olhos não viam, como continuam a não ver a vida, e eu continuo a enganar-me sempre.
O exterior não é nada em tudo! Aquela mulher era boa, a casa um mimo e o meu irmão tinha o requinte mais requintado por dentro como abandonado o exterior. A casa era farta, asseada, vivia-se para o paladar sem desprezar o estômago, trabalhava-se gozando, e estes homens curtidos por estes sóis de África eram mais homens, mais humanos, sabiam viver e respeitar-se, respeitando.»
1 comentário:
Querida Jawaa,
Só hoje consegui ver o teu post; e como te consigo entender! Lindo o que escreveste. Era assim, mas é tão bom saber que conseguiamos ver outras cores!
Beijos
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