quarta-feira, maio 31, 2006

Quitandeiro

O sol abriu esta manhã esplendoroso e eu resolvi aproveitar os tempos. Pese embora este plural, refiro-me ao clima e ao tempo de que disponho. Concretamente, fui lavar roupa. Mãos mergulhadas ma espuma morna, sorri ao ruído saudoso do esfregar da roupa nas mãos, misturado com o tilintar da pulseira de família que uso.

Nunca consegui atingir aquela perfeição de ruído que me embalou a infância. A técnica instintiva da Lavadeira, aliada à prática quotidiana dos anos que não contava, davam-lhe o requinte que nunca igualei. A voz do esfregar nas mãos era linda e a orquestra das pulseiras de metal que desciam pelos punhos, completava o conjunto.

A Lavadeira tinha um nome próprio, é claro, era Eulália, mas era tratada por Lavadeira e que me lembre nunca protestou. Não sei se minha Mãe teria tido alguma relutância em tratá-la pelo mesmo nome de minha avó materna, o que é certo é que lá em casa foi sempre Lavadeira e a única que tivemos até ao dia de sua morte. A seguir veio a Isabel, já não era nova e também muito dedicada; com que alegria recebeu nos braços a bebé da sua menina que tinha nascido no Puto(Portugal)!

Voltando à Eulália, ela era minha comadre, pois eu e meu irmão fomos à igreja do Canhe baptizar-lhe a Ana Maria, sua segunda filha. Tive sempre pouco contacto com a pequenita dado que o Adão, pai da criança e marido de direito da Eulália, não a entregava facilmente aos cuidados de sua mãe, quer pela frequência dos encontros desta com outros filhos do seu homólogo, quer pela inclinação aberta de Eulália aos prazeres de Dionísio.

O José, mocinho esperto e atrevido, era o mais velho e foi criado connosco até à idade da escola, que Adão não descurava a instrução dos seus filhos. Minha Mãe adorava o Zé que tinha sempre resposta pronta e, além disso, fazia-lhe os recaditos dentro de casa, pois sabia onde estava tudo: “Zé, traz a fita métrica; baixa o rádio que está muito alto; vê se vês o meu chapéu, se a água está a ferver para o patrão fazer café...” E o garoto tudo lhe fazia de boa vontade, sabendo bem que obtinha dela todas as guloseimas. E também tinha por ela um carinho muito especial desde pequenino. Teria uns três, quatro anitos, quando enfrentou corajosamente um dos quitandeiros habituais da casa que entrou apregoando:

- Quitandêro mia siô...ô...ô...ra! Teim côvi, cinôra, banana... e teim candimba (coelho)!

Pousando o tabuleiro cheio de frutas e legumes sobre as floreiras da entrada que ladeavam a escada, cheias de fetos e sardinheiras, o quitandeiro falou em umbundo para o Zé, que estava sentado a brincar nas escadas. Resposta imediata do menino:

- Com quem é que estás a falar? Comigo? Eu não falo essa língua de cão. Estás a ver a minha mãe? Ela é branca, foi ela que me criou e ensinou-me a falar português. Eu não sei falar a tua língua.

O homem riu da graça do pequeno. Não sei hoje se não se teria sentido chocado na sua negritude. Era habitual lá em casa. Passava nos dias certos, trazia a quitanda recheada de tudo muito fresquinho, muito mimoso, e a senhora às vezes, no Natal, dava roupa velha do patrão.

Era o Quitandeiro...



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