«Começou a onda branca e meses infinitos no maior país do mundo…»
Assim me escreveu bonito, quem eu amo do outro lado do mar. Por cá, em tempo, mal o branco chegou à Serra da Estrela, teve honras de abertura nos telejornais portugueses. É que a neve aqui altera a paisagem e a vida de quem vive num país que teima em não estar nunca preparado para a sua vinda, inexorável embora.
As estradas continuam a serpentear estreitas e as aldeias de outrora transformaram-se em vilas e cidades onde não passam carros de bois ou, se passam, ombreiam com os carros de luxo dos turistas que querem subir à Torre. Como se a neve não fosse neve um pouco mais abaixo, como se a serra não tivesse estrelas derramadas pelas encostas, como se a torre que lhe marca a altura erguesse mais alto os Montes Hermínios.
Aqui tudo muda, mas nada muda afinal, e o que muda nem sempre é para melhor. Os rebanhos permanecem, entregam o seu manto branco aos homens em cada Verão para as fábricas de tecelagem e vertem o seu leite para alimento dos zagais e para o queijo que, há um século atrás, esse verdadeiramente artesanal, se fabricava na serra, no domínio da noite e do silêncio, como Ferreira de Castro descreve primorosamente em «A Lã e a Neve»:
«... uma dúzia de apertões em cada úbere e logo outras tetas entre os dedos. O leite muito branco lá no fundo da vasilha ia subindo e expulsando lentamente aquela poalha escura com que a noite próxima enchera a ferrada e tudo quanto em volta existia. Horácio avançava, de cócoras, entre as ovelhas, empurrando para trás de si as que já mungira. Uma ave nocturna passou na escuridade, soltando um agudo pio. (…) Horácio coava o leite, derramando-o das ferradas cheias para uma grande ferrada vazia, na boca da qual estendera um pano. Os cães seguiam-lhe todos os movimentos. Viram-no colocar no leite assim filtrado o pedaço de cardo que devia produzir o coalhamento …»
Mas a leveza do branco que cobre os telhados e campos, que dá luminosidade diferente ao mundo que habitualmente nos rodeia, que verte a água dos céus em farripas de brando cair, também chegou ao sul deste nosso país ensolarado. E a vista que desfrutei não sei descrever, com os telhadinhos dos alpendres todos brancos e branca toda a paisagem, só um melro muito negro de bico amarelo teimando em cirandar por aí, tornando mais branco o branco do jardim coberto de neve. E o céu insistia em entornar-se imaculado por sobre as árvores de ramadas em vénias, desfazendo as nuvens ainda cinzentas mas tornadas alvas ao descer à terra, como se o ar filtrasse as ramas escuras para surpreender quem olhava por detrás das vidraças, para matar a saudade dos imigrantes, para obrigar a um novo olhar, para lembrar às gentes que há outros mundos, outras latitudes.
Foi intensa a queda de neve, mas por breves horas. Chegou porém para pintar os montes, matizar as árvores, interromper viagens, encerrar auto-estradas, fazer rodopiar os automóveis e escorregar os incautos, acomodar os sem-abrigo, suscitar alegria, tristeza, saudade, solidariedade. Só por isto, bem-haja a neve.
O calendário marca a Primavera.
O melro continua por aqui, canta para continuar a vida.
Assim me escreveu bonito, quem eu amo do outro lado do mar. Por cá, em tempo, mal o branco chegou à Serra da Estrela, teve honras de abertura nos telejornais portugueses. É que a neve aqui altera a paisagem e a vida de quem vive num país que teima em não estar nunca preparado para a sua vinda, inexorável embora.
As estradas continuam a serpentear estreitas e as aldeias de outrora transformaram-se em vilas e cidades onde não passam carros de bois ou, se passam, ombreiam com os carros de luxo dos turistas que querem subir à Torre. Como se a neve não fosse neve um pouco mais abaixo, como se a serra não tivesse estrelas derramadas pelas encostas, como se a torre que lhe marca a altura erguesse mais alto os Montes Hermínios.
Aqui tudo muda, mas nada muda afinal, e o que muda nem sempre é para melhor. Os rebanhos permanecem, entregam o seu manto branco aos homens em cada Verão para as fábricas de tecelagem e vertem o seu leite para alimento dos zagais e para o queijo que, há um século atrás, esse verdadeiramente artesanal, se fabricava na serra, no domínio da noite e do silêncio, como Ferreira de Castro descreve primorosamente em «A Lã e a Neve»:
«... uma dúzia de apertões em cada úbere e logo outras tetas entre os dedos. O leite muito branco lá no fundo da vasilha ia subindo e expulsando lentamente aquela poalha escura com que a noite próxima enchera a ferrada e tudo quanto em volta existia. Horácio avançava, de cócoras, entre as ovelhas, empurrando para trás de si as que já mungira. Uma ave nocturna passou na escuridade, soltando um agudo pio. (…) Horácio coava o leite, derramando-o das ferradas cheias para uma grande ferrada vazia, na boca da qual estendera um pano. Os cães seguiam-lhe todos os movimentos. Viram-no colocar no leite assim filtrado o pedaço de cardo que devia produzir o coalhamento …»
Mas a leveza do branco que cobre os telhados e campos, que dá luminosidade diferente ao mundo que habitualmente nos rodeia, que verte a água dos céus em farripas de brando cair, também chegou ao sul deste nosso país ensolarado. E a vista que desfrutei não sei descrever, com os telhadinhos dos alpendres todos brancos e branca toda a paisagem, só um melro muito negro de bico amarelo teimando em cirandar por aí, tornando mais branco o branco do jardim coberto de neve. E o céu insistia em entornar-se imaculado por sobre as árvores de ramadas em vénias, desfazendo as nuvens ainda cinzentas mas tornadas alvas ao descer à terra, como se o ar filtrasse as ramas escuras para surpreender quem olhava por detrás das vidraças, para matar a saudade dos imigrantes, para obrigar a um novo olhar, para lembrar às gentes que há outros mundos, outras latitudes.
Foi intensa a queda de neve, mas por breves horas. Chegou porém para pintar os montes, matizar as árvores, interromper viagens, encerrar auto-estradas, fazer rodopiar os automóveis e escorregar os incautos, acomodar os sem-abrigo, suscitar alegria, tristeza, saudade, solidariedade. Só por isto, bem-haja a neve.
O calendário marca a Primavera.
O melro continua por aqui, canta para continuar a vida.
2 comentários:
Quero, claro, mas tenho de descobrir como... mas isto vai, é preciso calma! Os meus 36 anos estão a chegar ao fim e logo serão 46, é uma maçada!
Bjinho e obrigada pela simpatia.
ler todo o blog, muito bom
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