Se a excitação é um mecanismo que depende de um capricho do Criador, o amor é, pelo contrário, aquilo que só nos pertence a nós e através do qual escapamos ao Criador. O amor é a nossa liberdade.
Milan Kundera, "A Insustentável Leveza do Ser"
Não
sou decididamente o que os olhos dos outros me vêem nem me sinto
parte integrante do espaço que me rodeia no seu todo. Com frequência
o mundo que partilho é bem outro, não muito distante da infância
longínqua em que o melhor amigo era imaginário.
Olho
no céu aquele enovelado brilhante de branco a afrontar o azul, a
desfazer-lhe a cor, o pincel dos ventos altos soprando e as figuras a
sucederem-se num crescendo de fantasias. É Setembro a anunciar as
primeiras chuvas, o fim do cacimbo frio e seco, o tempo dos tortulhos
que chegavam com os pastores e o gado no final do dia. E os loengos,
os loengos saídos daquela sacola do Camboiola – bordada por suas
mãos – e às vezes ainda um maboque de odor inigualável.
Bem
mais tarde, o Setembro final de férias, minhas férias reais, no
tempo em que a abertura das aulas era em Outubro, as minhas férias
após as multidões o calor, as cadeiras os chapéus, as toalhas os
banhos, os lanches a fruta, o cansaço da praia. Era o regresso lento
à escola ainda sem o barulho dos alunos, a minha mãe comigo, as
crianças em casa, os doces, as costuras, as rendas no repouso da
praia ao fim do dia.
Setembro
é agora mais triste, a minha mãe já não está para fazer anos, as
crianças já não são, todos os que amei seguiram caminhos, rotas
que já não passam por este espaço em meu redor. Mas eu ainda vivo
com eles, os dias de maior solidão fazem-nos chegar e eu convivo bem
com essa saudade que ajuda a viver, a esquecer a loucura imparável
do mundo que vou deixar ficar.
Outros
setembros continuarão a rodar no tempo, as noites serenas do outono
a chegar, noites mansas depois do pôr-do-sol inebriante a colorir
os poentes, os últimos raios a despedirem-se cobrindo o mar de
prata.
2 comentários:
belo crochet de emoções. e palavras belíssimas.
beijo
Jawaa, não tenho podido seguir estas
coisas, nem nos meus próprios bogues.
Mas estou a sentir em tudo o que escre-
ve aqui, além das imagens, uma evolução belíssima , técnica e espiritual.
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