domingo, agosto 24, 2014

A CATEDRAL



La Hollande est un songe, monsieur, un songe d'or et de fumée, plus fumeux le jour, plus dorée la nuit, et nuit et jour ce songe est peuplée de Lohen-grin comme ceux-ci, filant rêveusement sur leurs noires bicyclettes à haut guidons, cygnes funèbres qui tournent sans trêve, dans tout le pays, autour des mers, le long des canaux. Ils rêvent, la tête dans leurs nuées cuivrées, ils roulent en rond, ils prient, sonambules, dans l'encens doré de la brume, ils ne sont plus là. Ils sont partis à des milliers de kilomètres, vers Java, l'île lointaine. Ils prient leurs dieux grimaçants de l'Indonésie dont ils ont garni toutes leurs vitrines et qui errent en ce moment au-dessus de nous, avant de s'accrocher, comme des singes somptueux, aux enseignes et aux toits en escaliers, pour rappeler à ces colons nostalgiques que la Hollande n'est pas seulement l'Europe des marchands, mais la mer qui mène à Cipango et à ces îles où les hommes meurent fous et heureux.

Albert Camus, in «La Chute»



Não consegui olhar.

Ali ao meu lado, a menos de dois palmos, aqueles corpos desnudos, vagamente cobertos de tecido mínimo, mulheres esbeltas, esculturais, outras nem tanto, encostadas à porta de vidro aberta, na mão um telemóvel ou um cigarro, outras apenas um olhar, quem sabe um convite atrás do vidro fechado. Quem sabe ainda um olhar de tristeza, de receio, um pedido de ajuda entalado na garganta. Não consegui enfrentar uma única face, os pensamentos cavalgando pela novela inacabada quando parti, na certeza de que a máfia de Leste exerce o seu poderio num lugar da Europa do Norte donde se veicula a ideia de respeito pelos direitos humanos. 
 
Ao fundo ergue-se o perfil da catedral que Camus me anunciava, velando quieta, atenta, aquelas peças humanas expostas nas vitrines, seres humanos ao lado duma sociedade que as coloca do lado de fora dela, que as desfruta, desconhecidas, proscritas. Ou talvez não. Nem todas. Afinal a prostituição pode ser uma forma de sobrevivência, uma opção de vida como qualquer outra. 
 
Amsterdão e os seus canais não perdem a beleza, a sua arquitectura prende-nos o olhar, a cultura aparece na concentração e multiplicidade dos museus e galerias. Mas a cidade cansa pelo excesso de gente anónima, a multidão que passa e olha, olha e não vê, cansa pelo excesso de oferta de serviços inimagináveis que proliferam em todas as zonas e ferem a estrutura da cidade no seu conjunto.

Numa Holanda que visitei pela primeira vez, país de grandes espaços verdes e planos, horizontes bordados de árvores, Roterdão foi a minha cidade. Cidade grande, mansa como o seu Maas, casas magníficas, cais e canais e barcos e verdes, muito verde e pássaros que convivem sem medo dos humanos. E também Delft, a cidade de Vermeer e das faianças vindas do séc. XVII naquele azul inimitável dos nossos azulejos bem portugueses.

Dez dias é pouco para ver muito, e eu gosto de pousar.  Gostei de ver a conquista da terra, primeiro como que um enorme porto de abrigo com um farol em cada ponta, depois um imenso atol. As pedras a atapetarem o fundo, os troncos entrelaçados e a terra retirada do mar a cobrir tudo, os diques, mais diques, a areia plantada de ervas para a segurar e finalmente mais praia, mais um porto, mais terreno agrícola, mais uma refinaria que se acrescenta. 

E também ali conheci casa e história de um verdadeiro pirata holandês que combateu os espanhóis e deles foi feito prisioneiro, um pirata que tentou a sorte no Brasil e Angola, felizmente sem êxito para nós, um pirata de quem se mantém a casa referenciada numa rua de Roterdão com o seu nome – Piet Heinstraat – e onde uma placa destaca as suas pilhagens, entre as quais ouro, prata, pérolas, peles, açúcar, perfumes e... um papagaio.

Hei-de voltar.

2 comentários:

Manuel Veiga disse...

um prazer seguir a tua bela reportagem.

excelente.

beijo

Rocha de Sousa disse...

Um grande apreço pelo clima denunciado
no início deste texto. Mais, depois de
se ler tudo, de lembrarmos Camus, há
aquele Hei-de voltar.
Se calhar era pelo espírito de outras
memórias, mas nos westerns o cow-boy
justiceiro voltava sempre.